Carta-Prefácio Meu bom amigo:
O seu livro é a história patética de uma alma. Qual?
A do Gebo, a de Luísa, a de Sofia, a da Mouca, a dos Pobres enfim? Não. A sua. Histórias diversas, que se resumem numa história única: a da sua alma, transitando almas, a da sua vida, percorrendo vidas. Autobiografia espiritual, dilacerada e furiosa, demoníaca e santa, blasfemadora e divina. Confissão verdadeira, plena, absoluta de um organismo que sente a música misteriosa do universo, de um coração que repercute a dor eterna da natureza, mas que só ao cabo de oscilações, dúvidas e desânimos, coordena a idealidade do ser com as aparências do ser, o espírito com as formas, o Deus – amor e beatitude, com a matéria –, crime e sofrimento.
Não vejo diante de mim um poema estéril, obra dos sentidos, da imaginação e da volúpia. Vejo um acto profundo, espontâneo, de imensidade religiosa, O homem que se confessa abala-me e deslumbra-me. Não a confissão mentirosa, a confissão vulgar, da boca que tem dentes, para o ouvido que tem sombras. Não a confissão-análise, a confissão de críticos, rol de inteligência, catálogo de ideias. Mas a esplêndida confissão das almas vertiginosas, desagregando-se, transidas de eternidade e mistério. Como o fogo devorador dissocia o rochedo, há lavaredas ignotas que dissociam as almas. E, se tais almas se desdobram, a natureza denuncia-se. O homem é um resumo ideal da natureza. Andou o infinito, e lembra-se; andará o infinito, e já o sonha. Quando o génio explui, conta-nos a natureza a sua história. O génio supremo é o santo. O verbo do santo, eis a língua clara do universo.
As confissões augustas são as dos poetas e dos santos. No homem vulgar a personalidade rígida encarcera e coalha as personalidades voláteis e difusas.