XX - A outra primavera Os dias passaram-se e a Árvore era um colosso esbranquiçado e mudo. Nessa noite o Astrónomo encontrou o Pita desvairado, com o xale-manta ao vento.
– Pita, você tem um ar estranho.
E o Pita, transido, murmurou:
– Você deve tê-los visto. Nascem, irrompem da treva...
O outro, cheio de serenidade, afiançou:
– Foi a primavera.
– A primavera isto! O amigo desvaira. Como a primavera? Eles só aparecem de noite, criam-se nos saguões. Deparo com criaturas que nunca vi. Uns são lama viva, outros que são?... Homem, dir-se-ia que todos os sonhos tomaram corpo.
– Tomaram. Tenho pensado nisso. Pois foi a primavera. Você tem visto um charco, lama e água revolvida? Vem a primavera e aquilo transforma-se. O mesmo sopro que faz bater mais alto; o coração dos montes cria naquele palmo negro a vida – murmúrios, gritos, um arrancar de mistério. A primavera faz isto; transforma o húmus inerte numa vida furiosa. Eu já vi...
– Então...
– Então, Pita, você medite, é isto... Esta lama que se cria nos saguões, homens, gebos, emparedados, pôs-se com estas noites a criar... Veio dali – e apontou para os lados do Hospital – um eflúvio, o mesmo que faz nascer as árvores, e eles estremeceram abalados.
– A noite tem realmente qualquer coisa que aflige...
Opressão, mistério...
– Emoção que foi até às tocas onde eles criam.
Puseram-se a sonhar e criaram. Ora escute... Ouve um frémito, o escachoar dum rio, gritos?... E, como se a gente pusesse o ouvido de encontro à terra...
– Criaram?
– Criaram. Isto que nós vemos não são eles, são aparições. É o que eles sonharam. Os sonhos dos desgraçados tomaram corpo. Só nós é que não podemos sonhar.
– Nós não, nunca mais... Os sonhos dos desgraçados tomaram enfim corpo!
– Tanto sonharam! tanto sonharam!.