XXI - A Morte Oh eu já não sei bem, pobre de mim, o que e realidade e o que é sonho. Por vezes me parece que o próprio Hospital se põe a falar pela sua boca de pedra.
Em noites de luar, quando tudo para lá se envolve em álgido luar, ei-lo que enternecido conta sonhos rotos e tristes, o sonho dos pobres, dos cegos das estradas, coisas humildes e no entanto vivas, como os fiozinhos de água, que apenas convivem com uma lapa e um farrapo de musgo, esquecidos no globo, mas que exalam uma frescura enorme...
Encontraram ontem o Astrónomo estendido na latrina. Ultimamente ia-lhe no crânio um ruído estranho.
Constelações de fogo, mundos e coisas terrenas confundiam-se. Absorto, tremendo de frio dentro do casaco de alpaca, olhava o céu num êxtase. Donde tombara? Da fome ou dum sonho? Consumira-se com um tronco num lar.
Deram com ele caído na tábua molhada daquela ignóbil latrina de casa de hóspedes. Nos seus olhos, mesmo mortos, ficou luciluzindo uma poeira de espanto.
Morrera surpreendendo algum mundo desconhecido ou descobrindo outro sonho tão vivo, que, de vê-lo, caíra fulminado? Em torno era o asco: as paredes com dedadas, versos obscenos e legendas prodigiosas – e entre aquela lama o Astrónomo morto era como a claridade das constelações, que luzem até no fundo das latrinas.
Um rio, dir-se-ia um rio, com coisas trágicas à tona.
Só a Árvore cresce e à medida que ela cria forças a Mouca se consome. A tosse desconjunta-a. Criou-a a desgraça humana, construiu-a do lodo das ruas e da abjecção. Mas a dor vem e purifica: é como o fogo que torna um galho apodrecido, atirado ao lume, no ramo do oiro mais fulgido. Magra, alta, luziam-lhe os olhos dum brilho estranho. Riem-se os soldados, batem-lhe os ladrões e só ela não ri como outrora.