XXIV - O ladrão e a filha A filha da Asilada e do Morto criou-se na viela entre gritos das mulheres e chufas de soldados e ladrões.
Tinha quatro anos e dormia pelos cantos ou nos braços da Gorda e da Mouca. Assentava-a nas pernas o Velho que tinha sido cavador e que abria para ela a enorme boca desdentada. Fazia-lhe festas a patroa. Enchiam-na de beijos as mulheres num frenesi e dias inteiros passavam por ela sem a verem. Esqueciam-na.
Adormecia a chorar nas camas ou nos degraus das portas.
Só a mãe lhe fugia sempre:
– Não a posso ver!...
Mas ela crescia. Crescia ao acaso, naquele sítio de alucinação onde os seres se transformam como em sonho, em figuras de verdade que só a certas horas vêm à superfície, irrompendo do mundo de dor e de tragédia a que pertencemos todos...
E o Morto perguntava à amante:
– Porque não podes ver o anjinho?
– Sei lá! Não a posso ver...
– És pior que as cabras!
E batia-lhe. Ela calava-se com um olho fixo de maldade e de espanto.
– Escusas de me bater, não a posso ver. Tomei-lhe raiva. Deixa-me!
Agasalhava-a o ladrão com velhos trapos. Encostava- a ao peito, e nesse inverno dera-lhe um casaco velho para a aquecer.
– O tropeço não morre? – perguntava a Asilada, talvez de propósito para o ladrão lhe bater.
O tropeço não morria. Punha-se a olhar para o pai, a agarrar-se-lhe às pernas, a querer segui-lo quando ele partia, e lá ia crescendo na viela negra entre gritos e injúrias e o cantar triste das mulheres.
– Mas porque é que bates na pequena? – diziam-lhe as outras.
– Não sei! não sei! – gritava.
No começo do inverno a Asilada foi para o hospital e antes de a levarem abraçou-se à filha a chorar num desespero. Foi difícil arrancar-lha dos braços.