VII - Primavera O Gabiru sentiu-se aquecido, como a terra quando vem a primavera. Ia criar! ia criar!... Aquele chão que só o arado do sonho lavrara, ei-lo atravessado por este veio turvo, que tudo remexe e transforma – a vida.
Consumira-o o sonho, tornando-o cambado e gasto, esguio e de olhos perdidos de cisma... Acordara enfim para a realidade e ele, que tinha passado a vida a revolver um brasido de ideias, longe da terra e do seu lodo, amou a Mouca, rasa como o chão. Todos se riam dela, magra e pálida, de pacho num olho, com um ar de máscara que vai gritar de aflição.
O seu ideal prendera-lhe os olhos tal qual no-los prende o lume, de forma que, ao erguê-los, dera de cara com a vida e perguntara: Que é isto? o mundo, a tempestade, tudo o que do cubículo vejo, arfando ao sol, penetrado de ruídos e de sombras? Para lá, para além, árvores acenando-me com os braços, vozes de águas fartando as terras embebidas? Isto?... Tudo é luz, é um chama? E como tudo é belo!
Ver ao pé árvores e montes, a esse esguio filósofo habituado a conviver com velhos cartapácios, parecia-lhe tão irrealizável como subir às estrelas. Nos alfarrábios fala-se de tudo menos da vida. Por isso, acordando espantado, interrogava as ondas luminosas, os rios correndo, o extraordinário mar: «Vós que me quereis?» E no alto da mansarda sorria, pencudo e triste, esguio como um enterro.
– Porque a amas tu, filósofo?
– Sei lá! Amo-a. Dá-me vontade de chorar ao vê-la.
Amo os seus olhos tristes, o seu feitio de cão espancado. Amo-a, porque qualquer outra me desprezaria, envelhecido a sonhar. Ela é parecida comigo, talvez tenha pena de mim.
Todos somos construtores. De terra e de emoção andamos pelo mundo a amassar estátuas; de realidade e de sonho arquitectamos as figuras que se misturam na nossa vida.