VIII - Memórias de Luísa É assim a história duma das mulheres.
«Tive sempre frio. Esta impressão de ter os ossos gelados vem de muito longe, de pequenina.
Nunca tive mãe, nem ninguém. Fecho os olhos e só vejo o Asilo, os corredores húmidos, o dormitório, o frio refeitório abobadado de granito. Toda aquela pedra parecia sepultar-nos.
Também guardo de pequenina esta impressão: a vontade que tinha de beijar, sem ter ninguém a quem dar beijos. Todos os que eu conhecia eram hirtos.
Vou ver se me lembro bem... Primeiro é tudo confuso: depois vai-se espancando a névoa e eu recordo a triste existência do Asilo.
Noite ainda nos erguíamos para rezar. Tocava um sino. Mal sabíamos andar, trôpegas como velhinhas. A algumas era preciso vesti-las. A Irmã ralhava se nos demorávamos. Aquele sono da manhã de que nos arrancavam era como a cova e o esquecimento. Antes nos deixassem dormir para sempre. Para que vem a gente ao mundo?
De tantas que conheci, quase todas, mais felizes, morreram por não terem mãe.
Todas, tão pequeninas, tinham o ar de serem já crescidas. E não sei que de amargo, de reflectido, de sofrimento, de experiência da vida. Brincavam sem risos pelos cantos, com bichos, com pedrinhas. Uma vez uma disse alto:
– Ó mamã!...
E foi um escândalo. Onde aprendera ela, que não tinha mãe, a pronunciar aquela palavra?
Quereis crer? Só tenho esta imagem: pareciam velhinhas recolhidas, tristes por não terem filhos.
E no entanto eu curto saudades dessa negra existência do Asilo.
Na cerca havia um curral com vacas, que nos davam um leite aguado. Duma vez uma, já eu era grande, toda a noite gemeu. Por piedade perguntei ao hortelão o que ela tinha.
– Soidades por lhe levarem o filho.
E há mães que os deitam fora!
Muito deve custar a morrer a uma mãe que deixa no mundo um filho para o Asilo!
Havia as grandes, as médias e as pequenas.