XIII - Essa rapariguinha Quedo-me a cismar sozinho neste velho casarão... De noite ouço vozes, logo sufocadas, que me querem falar e não podem. Só os meus crimes de outrora (há tanto esquecidos) se põem a pregar dentro de mim.
Arqueja o lume no escuro e sinto em redor toda a treva povoada...
Foi há vinte anos e no entanto hoje, como em certas horas pressagas, alguma coisa remexe e acorda dentro em mim. Oh não! bem sei, por de mais conheço a forma por que as ideias se ligam, até as mais contraditórias, e como um nada recorda um velho crime abafado... Mas não é isto: é do fundo do meu ser que esta imagem irrompe, desligada, sem nexo, como um fantasma. Às vezes estou só e esquecido e um estalido atrás de mim lembra-ma, outras acordo de repente, altas horas, já a pensar nessa pobre criatura explorada. O rumor da vida, outros crimes amontoados, podem fazer-me esquecer esta imagem, mas um dia vem em que grito:
– Abandonada! abandonada!...
E no entanto o facto em si é simples e banal, vulgar como essa rapariguinha das ruas, molhada até aos ossos, a quem nem mesmo soube o nome, porque nem sequer lho perguntei.
Convenci-a a que me seguisse por vaidade, para ser como os outros, ao encontrá-la uma tarde, sem pão, expulsa de casa, vagueando na tristeza das ruas. Teria quinze anos? Teria. Disse-me a medo que sim. E eu, levando-a para a casa de passe, sentia, não orgulho, nem prazer, mas opressão e vergonha. Perguntava já a mim mesmo: como hei-de ver-me livre dela?
Nada mais ignorante, mais puro, mais simples...
Foi um crime. Deixei-a rapidamente, dando dinheiro à mulher gorda e vesga, que sorria, e fugi como quem foge ao remorso.
Mais nada. Porque é então – já lá vão muitos anos – que a certas horas de silêncio me lembra essa pobre criatura e as suas palavras ingénuas, o sorriso da mulher vesga e o pobre corpo magrinho e encharcado da chuva, todo dorido da vida?
Vejo-a aqui, aqui no escuro, descalça, molhada até aos ossos e a sorrir-se para mim, com um sorriso todo lágrimas, com um sorriso tão triste que me dói o coração.