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Capítulo 16: XV – Fala

Página 94
XV – Fala

Falo. De súbito a minha vida surgiu-me como um desses dias de inverno pardos e monótonos, em que até o resquício de sonho que acaso coube em sorte às pedras se concentra adormecido. Secou-me na boca o riso que ia rir, e acudiram-me ideias em que nunca tinha reflectido... Alguém abala uma árvore até às suas últimas raízes. Arranca-a. O grito que a terra revolvida dá foi o meu grito.

Dêem-me a vida que devem viver os seres e as coisas a quem ninguém ensina a vida; que bebem a largos sorvos a existência: em quem a vida corre desordenada e esplêndida. Quero enfim isto: ser; não fingir, mas ser; não viver da tua vida, mas da minha própria vida.

O momento em que tu deparas, a sós com a tua alma, que até aí não tinham encontrado, toca a loucura – mas depois ouves falar dentro de ti tudo que estava para sempre adormecido...

O que é isto – o escárnio? Donde vem isto ao mundo? Riem porventura as árvores? E os montes e os rios também riem? O escárnio torce o coração. Riram-se de mim! riram-se de mim!

Surraram-me, secaram-me. O que eu sei é aprendido, vão, construído de palavras que não são minhas.

Nada conheço da vida.

O homem só é feliz quando é ele. Os outros é que o empurram para a desgraça. O homem precisa de se encontrar.

Entras na vida e modelam-te; mestres, amigos, livros, amassam-te e modelam-te. Para quê? Para te fazerem feliz – dizem. Deixem-me ser desgraçado à minha vontade!...

Qualquer árvore incha, cresce e por tal forma se liga à terra, pelas suas raízes, que a esfuranca como nem o ferro do arado a lavra. Só na minha vida não há raízes.

Amigos não os tenho nem os quero, e tudo me parece pardo e inútil.

Ainda a natureza me prende: fico horas a ver um charco e nunca me comovi como diante da árvore mais humilde.

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pág. 94 (Capítulo 16)

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Capa do livro Os Pobres
Páginas: 158
Página atual: 94

 
   
 
   
Os capítulos deste livro:
Carta-Prefácio 1
I - O enxurro 18
II - O Gebo 23
III - As mulheres 28
IV - O Gabiru 35
V - História do Gebo 42
VI - Filosofia do Gabiru! 49
VII - Primavera 52
VIII - Memórias de Luísa 59
IX - Filosofia do Gabiru 63
X - História do Gebo 67
XI - Luísa e o morto 73
XII - Filosofia do Gabiru 77
XIII - Essa rapariguinha 81
XIV - O escárnio 87
XV – Fala 94
XVI - O que é a vida? 97
XVII - História do Gebo 109
XVIII - O Gabiru treslê 114
XIX - A Mouca 118
XX - A outra primavera 121
XXI - A Morte 126
XXII - A filosofia do Gabiru 130
XXIII - A Árvore 134
XXIV - O ladrão e a filha 139
XXV - Natal dos pobres 143
XXI - Aí têm os senhores a natureza! 154