CAPÍTULO XXIII - A RODA DA FORTUNA A viscondessa tinha insónias. O seu espertar, se adormecia fatigada em devaneios, era sobressaltado. Aquele homem pálido, triste, trajado de escuro, absorvido no lavor de todos os dias, honrado pelos gabos de pessoas insuspeitas, acorrentado voluntariamente à galé política; aquele homem, sobretudo, que depusera nas mãos da criancinha maltrapida o seu pão de oito dias, que lhe queria a ela?! Que significação dera ao acto de liberalidade incoerente com a sua pobreza? Quis repreender-lhe a mesquinharia, ou possuir a esmola que partira das suas mãos? Eram estes os despertadores das suas noites desveladas, os quais, somados pelos que bem conhecem os algarismos do coração, davam a santa e infernal trivialidade do amor.
Se as virtudes, aliadas ao rosto insinuativo, justificavam o pendor da rica viúva para o jornalista, escusado é dizer que a viscondessa da Gandarela o amava como quem não tinha amado ainda, no atravessar vinte anos tristes. Os seis da infância não lhe lembravam; os outros seis do colégio conventual recordava-os com amargura; três do pavor do marido que o seu pai lhe destinara; dois de casada, sem carícias alentadoras da mãe, afastada violentamente de si e morta de saudade; dois anos de viúva, a pensar incessantemente na ventura que tinha sonhado, se um dia fosse livre; e os dias e as noites sucediam-se e não lhe deixavam uma hora de grata memória.
A liberdade, pois, que montava para a sua felicidade? Esta interrogação acabou desde o momento em que ela, na ausência do conselheiro, seu agente no despacho de Alexandre, disse:
- Que admirável homem!
E via-o passar com a usual gravidade e suprema indiferença. Perguntava a viscondessa que razão tivera aquele homem para encará-la uma só vez.