XXIV Avida que, por aquele tempo, Daniel passava na aldeia, era de uma monotonia capaz até de saciar as exigências do homem mais indolente e ocioso.
Vejamos em que se ocupava o nosso herói, enquanto, sem o suspeitar, estava sendo objecto do momentoso diálogo, do qual, no capítulo antecedente, nos aventurámos a ser cronista.
Para isso tomemos a dianteira ao reitor e entremos, antes dele, no quarto de Daniel.
Não sei se é a voz da consciência a que me está a bradar que vou cometer uma indiscrição.
A ociosidade absoluta imprime de ordinário aos actos do homem certa feição pueril, que ele procura sempre ocultar aos olhos estranhos.
As pessoas mais sisudas e graves têm momentos na vida, durante os quais, a sós consigo, se entregam a distracções de criança.
É possível, pois, irmos encontrar Daniel em um dos tais momentos; e talvez que o possamos, por essa forma, prejudicar no conceito dos leitores. Mas, por quem são, lembrem-se que, em horas de ócio e enfado, ouso eu afirmá-lo, não têm sido também demasiado escrupulosos na escolha de passatempos; e essa consideração decerto os fará indulgentes.
Àquela hora do dia, Daniel sentia-se morrer de tédio, debaixo dos telhados paternais.
O calor não o deixara sair.
Quis ler; faltavam-lhe os livros. Os seus ainda não tinham chegado da cidade.
Revistando os cantos e caminhos da casa, apenas encontrou três repertórios dos anos findos, uma cartilha de doutrina cristã, uma tábua de pesos, medidas e dinheiros, e, em género mais ameno, o Testamento do Galo, a Confissão do Marujo Vicente, e a Vida Milagrosa de não sei que santo, padroeiro da freguesia.
Ainda assim, tudo isso leu Daniel, por um motivo análogo, ao que levou os náufragos da nau Catrineta a «deitarem sola de molho, para o outro dia jantar».