Neste casarão onde moro a toda a hora se ouve o ruído da levada; corre sempre como as torrentes desordenadas e esplêndidas. Prega o inverno bravio, o vento e os aguaceiros passam, mas escutai, escutai!...
São meus vizinhos, lá em baixo mulheres perdidas, ao pé de mim dois casados, e na trapeira um gato pingado, a quem chamam S. José. As mulheres passam às vezes na rua, com os xales a rasto; o gato-pingado só sai à noitinha à hora dos morcegos. Mais tímido que eu, encontro-o nas escadas a tossir, com o peito escalavrado e roto.
Para que vive esta ralé? Levantam-se derreados, para cavar, para berrar, para que lhes dêem um pedaço de pão e só se deitam no sepulcro. Caminho sem sonho.
Da vida coube-lhes este quinhão amargo: o cansaço, a humilhação e a fome.
Se passam pelas árvores num dia de primavera, tão lindo, que até as próprias macieiras de comovidas se desentranham em flor, sabeis o que acontece? As árvores retraem-se, as coisas calam-se, ao vê-los passar cobertos de suor, calcados e gastos. Para que é que vivem aos gritos ralé, pedras, sapos? Para que é que Deus os cria?
O gato-pingado... Ei-lo que sobe. Cada passo me lembra uma pazada de terra. É soturno este homem, esguio e magro, com o chapéu alto embrulhado no lenço do rapé e a casaca dobrada no braço. Nunca fala. Estou mesmo em dizer que não pensa, este avejão que só sai para os enterros. Deve ser mau, deve ser duro: nunca decerto chorou. Os garotos apedrejam-no quando passa pela rua, esguio, vesgo, de chapéu alto e casaca. Aposto que, quando arrancam das casas os caixões como quem arranca o coração dos vivos, ao ouvir gritos, tem o riso interior de quem está farto de viver só, arredado e humilhado... Gato-pingado! gato-pingado! Vive de lágrimas, sustenta-se de dores.