IV - O Gabiru No último andar do prédio mora o Gabiru, um solitário filósofo, esguio e triste como um enterro. Sabe tudo e nunca viveu. O que existe para lá do Hospital é para ele um grande mar ignorado e verde.
A realidade também não na entende: da vida só se fartou com sofreguidão desta fonte que transborda – o sonho. Tem o olhar estático e, metido na trapeira com ignóbeis calhamaços, deixa correr as suas ideias à solta como os rios. Assim, metafísico e pobre, de raras palavras, deitou-se a armar a Mouca, escárnio de soldados.
Nasceu para sonhar. Tem um suspiro de alívio quando se fecha na mansarda e exclama: – Vou idear!...
– Sabe palavras, teorias, cartapácios, e nunca viu ao pé os rios, os montes, nem as árvores. Remexe em ideias profundas e nunca encontrou a realidade.
É assim feliz e triste. Posto à janela do cubículo espreita por cima do Hospital, sente correr o doirado jorro dos dias, cisma num portentoso sonho e ama. Entre as ideias que vai tecendo surge sempre aquela figura trágica, que todo o dia ri com os ladrões e os soldados...
Ignora a vida. Alguma coisa, porém, existe de imaterial – emoção violeta e oiro – que o rodeia, quase o toca e súbito foge magoada e aos soluços. E fio a fio vai tecendo e constrói a sua teoria:
«Oh como eu tremo diante das árvores, do luar que corre branco e sem murmúrio, da natureza esplêndida que adivinho para além dos muros do Hospital!... Passo por doido e na verdade quase grito de pavor diante do espantoso universo. Olhai a treva a escutar, o mistério, a água que brota sem ruído, a árvore de braços erguidos, o caliginoso mar...
O homem passa indiferente, mas eu sinto-me enlouquecer diante das coisas mais simples: dum farrapo de nuvem como um sudário a rasto, dum raio de luz em pó, todo de oiro vivo, que entra no meu quarto.