A treva espessa em torno e o mesmo ruído da ressaca, a pregar. As nuvens baixas envolviam-nos num fluido negro, ambos tragados pelo deserto da noite. Não se viam e aquelas duas vozes, uma infantil e baixinha, a outra rouca, eram como o diálogo de duas forças ignotas, que o acaso rola no mesmo turbilhão do infinito.
Perguntou-lhe o Morto:
– Como te chamas?
– Chamo-me Luísa.
– Quem te fez mal?
– Ninguém. Estou grávida.
– Ah!...
– Estou grávida. Eu não sabia nada. Estou grávida, acabou-se. Porque é que não ensinam à gente que todos nos querem fazer mal? Uma pessoa devia aprender.
– O quê?
– A ser desgraçada. Há dois dias que não como.
Tenho andado por aí. Botaram-me fora, empurraram-me e eu ando por aí a chorar.
– Vai pra a tua casa.
– Eu sou do Asilo, não tenho ninguém, nem mãe, nem nada.
– Enganaram-te?
– A mim não, ninguém me enganou. Eu não sabia nada. Quando vim do asilo não sabia nada. Um dia apareci grávida e puseram-me fora. Ninguém me quer assim. Quando a gente está grávida que há-de fazer? A gente não tem culpa...
– Não fizesses o filho.
– Eu era uma inocente.
– Ah! – E o ladrão riu-se.
– Não sabia nada, juro-lhe pela minha salvação.
– E então?
– Deitaram-me fora do asilo e fui servir. O patrão foi quem me logrou.
É sempre o mesmo caso banal e trágico. Se o homem encontra uma pobre criatura desprotegida e ao desamparo, ilude-a e explora-a. Saída do asilo com uma trouxa debaixo do braço e o discurso do senhor provedor, foi servir. Logo que o patrão viu aquela rapariguinha ao abandono na terra, pôs-se a falar-lhe baixo, às escondidas.
– Era como se me pisassem o coração...
Ela ouviu e depois com um sorriso triste, em que mostrava os dentes agudos de esfaimada, ficava muitas horas cismática e a falar sozinha.