O Cortiço - Cap. 16: Capítulo 16 Pág. 179 / 239

criatura abandonada antepunha à rude agitação do cortiço uma nota lamentosa e tristonha de uma vaca chamando ao longe, perdida ao cair da noite num lagar desconhecido e agreste. Mas o trabalho aquecia já de uma ponta à outra da estalagem; ria-se, cantava-se, soltava-se a língua; o formigueiro assanhava-se com as compras para o almoço; os mercadores entravam e saiam: a máquina de massas principiava a bufar. E Piedade, assentada à soleira de sua porta, paciente e ululante como um cão que espera pelo dono, maldizia a hora em que saíra da sua terra, e parecia disposta a morrer ali mesmo, naquele limiar de granito, onde ela, tantas vezes, com a cabeça encostada ao ombro do seu homem, suspirava feliz, ouvindo gemer na guitarra dele os queridos fados de além-mar.

E Jerônimo não aparecia.

Ela ergueu-se finalmente, foi lá fora ao capinzal, pôs-se a andar agitada, falando sozinha, a gesticular forte. E nos seus movimentos de desespero, quando levantava para o céu os punhos fechados, dir-se-ia que não era contra o marido que se revoltava, mas sim contra aquela amaldiçoada luz alucinadora, contra aquele sol crapuloso, que fazia ferver o sangue aos homens e metia-lhes no corpo luxúrias de bode. Parecia rebelar-se contra aquela natureza alcoviteira, que lhe roubara o seu homem para dá-lo a outra, porque a outra era gente do seu peito e ela não.

E maldizia soluçando a hora em que saíra da sua terra; essa boa terra cansada, velha como que enferma; essa boa terra tranquila, sem sobressaltos nem desvarios de juventude. Sim, lá os campos eram frios e melancólicos, de um verde alourado e quieto, e não ardentes e esmeraldinos e afogados em tanto sol e em tanto perfume como o deste inferno, onde em cada folha que se pisa há debaixo um réptil venenoso, como em cada flor que desabotoa e em cada moscardo que adeja há um vírus de lascívia. Lá, nos saudosos campos da sua terra, não se ouvia em noites de lua clara roncar a onça e o maracajá, nem pela manhã, ao romper do dia, rilhava o bando truculento das queixadas; lá não varava pelas florestas a anta feia e





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