— É pois o caso, senhor — prosseguiu o homem — que eu, pela misericórdia de Deus, sou casado em boa paz e à face da Santa Igreja Católica Romana; tenho dois filhos estudantes: o mais novo estuda para bacharel e o mais velho para licenciado; sou viúvo, porque morreu minha mulher, ou, para melhor dizer, matou-ma um mau médico, que a purgou, estando ela grávida; e, se Deus fosse servido que ela tivesse o seu bom sucesso e me nascesse outro filho, havia de o fazer estudar para doutor, para que não tivesse inveja a seus irmãos, o bacharel e o licenciado.
— De modo — observou Sancho — que, se vossa mulher não tivesse morrido, ou não vo-la tivessem morto, não estaríeis agora viúvo?
— Não, decerto — respondeu o lavrador.
— Estamos adiantados — redarguiu Sancho; — continuai, irmão, que são horas mais de dormir que de negociar.
— Digo, pois — tornou o lavrador — que este meu filho, que há-de ser bacharel, enamorou-se, no mesmo povo, de uma donzela chamada Clara Perlerina, filha de André Perlerino, lavrador riquíssimo, e a donzela, para dizer a verdade, é uma verdadeira pérola oriental: vista pela direita parece uma flor dos campos, vista pela esquerda não tanto, porque lhe falta o olho desse lado, que lhe saltou fora com bexigas; e, ainda que as covas do rosto são muitas e grandes, dizem os que lhe querem bem, que nessas covas se sepultam as almas dos seus namorados. E tão asseada que, para não sujar a cara, traz o nariz, como diz o outro, arregaçado, que não parece senão que vai fugindo da boca, e, com tudo isso, a todos encanta, porque tem a boca muito grande, boca que, se lhe não faltassem dezoito dentes, podia passar por muito bem formada. Dos lábios não tenho que dizer, porque são tão sutis e delicados que, se