Capítulo 1: SEGUNDA PARTE / CAPÍTULO I - Do que passaram o cura e o barbeiro com D. Quixote acerca da sua enfermidade.
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O arcebispo, persuadido por muitos bilhetes, acerados e discretos, ordenou a um seu capelão que se informasse do reitor da casa, se era verdade o que aquele licenciado lhe escrevia, e que falasse igualmente com o doido, e, se visse que ele estava em seu juízo, o tirasse para fora e pusesse em liberdade. Assim fez o capelão, e o reitor disse-lhe que esse homem ainda estava doido, que posto que falava muitas vezes como pessoa de grande entendimento, afinal disparatava, dizendo tantas necedades, que em serem muitas e grandes igualavam os seus primeiros acertos, como se podia experimentar, falando-lhe. Quis o capelão fazer a experiência, e indo ter com o doido, esteve a conversar com ele mais de uma hora, e em todo esse tempo nunca o doido disse uma só coisa torcida ou disparatada, antes discursou tão ajuizadamente, que o capelão foi obrigado a confessar que o doido estava são; e, entre outras coisas que o licenciado lhe disse, foi que o reitor lhe atravessava tudo, para não perder as dádivas com que o brindavam os seus parentes, para que dissesse que ele estava doido com intervalos lúcidos, e que o maior inimigo, que na sua desgraça tinha, era a sua muita fazenda, pois para a desfrutar os seus inimigos cometiam dolo e duvidavam da mercê que Nosso Senhor lhe fizera, em o mudar de bruto em homem. Finalmente, falou de modo que deu o reitor por suspeito, os seus parentes por cobiçosos e desalmados, e ele por tão discreto, que o capelão se resolveu a levá-lo consigo, para que o arcebispo o visse, e tocasse com a mão a verdade daquele negócio. Nesta boa-fé, o honrado capelão pediu ao reitor que mandasse dar o fato com que para ali entrara o licenciado; tornou-lhe o reitor que visse o que fazia, porque sem dúvida alguma o licenciado ainda estava doido.
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