Quixote, ressuscitara, conformando-se com os caprichos dos seus amos, coroada com a mesma grinalda que tinha no túmulo e vestindo uma túnica de tafetá branco, semeada de flores de ouro e com os cabelos soltos pelas espáduas, arrimada a um báculo de negro e finíssimo ébano, entrou pelo quarto de D. Quixote; e este, vendo-a, turbado e confuso, se encolheu e tapou todo com os lençóis e colchas da cama, e ficou de língua muda, sem que acertasse a fazer-lhe cortesia nenhuma. Sentou-se Altisidora à sua cabeceira e, com voz terna e débil, lhe disse:
— Quando as mulheres principais, e donzelas recatadas, atropelam a honra e dão licença à língua que rompa por todos os inconvenientes, dando notícia, em público, dos segredos que o seu coração encerra, em grande aperto se acham. Eu, senhor D. Quixote de la Mancha, sou uma destas, vencida e enamorada; mas, com tudo isso, sofrida e honesta; tanto assim, que, por sê-lo tanto, me rebentou a alma com o silêncio e perdi a vida.
Há dois dias que, em consideração do rigor com que me trataste, ó cavaleiro empedernido, mais duro do que o mármore! estive morta, ou, pelo menos, por morta me tiveram os que me viram; e, se o amor, condoendo-se de mim, não pusesse o meu remédio nos martírios deste bom escudeiro, lá ficaria eu no outro mundo.
— O amor podia perfeitamente — disse Sancho — depositá-lo nos do meu burro, que eu lho agradeceria muito. Mas diga-me, senhora, e queira o céu conceder-lhe mais brando enamorado que meu amo: que é que viu no outro mundo? que há no inferno? porque, a esse paradeiro, há-de ir ter, por força, quem morre desesperado.
— Quer que lhe diga a verdade? — respondeu Altisidora — parece-me que não morri de todo, porque não cheguei a entrar no inferno; e, se lá entrasse, decerto que não poderia sair.