Capítulo 1: SEGUNDA PARTE / CAPÍTULO I - Do que passaram o cura e o barbeiro com D. Quixote acerca da sua enfermidade.
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nem enxárcia alguma, com intrépido coração se arroje para dentro dele, entregando-se às implacáveis ondas do mar profundo, que ora o levantam ao céu, ora o precipitam num abismo, e ele, pondo o peito à incontrastável borrasca, quando mal se precata acha-se a três mil e tantas léguas distante do lugar onde embarcou, e, saltando em remota e desconhecida terra, sucedem-lhe coisas dignas de ser escritas, não em pergaminho, mas em bronze; agora, porém, já triunfa a preguiça da diligência, o vício da virtude, a ociosidade do trabalho, a arrogância da valentia, e a teoria da prática das armas, que só brilharam e resplandeceram nas idades de ouro e nos cavaleiros andantes. Senão, digam-me: Quem foi mais honesto e mais valente do que o famoso Amadis de Gaula? quem foi mais discreto do que Palmeirim de Inglaterra? quem teve mais conciliadoras maneiras do que Tirante el Blanco? quem foi mais galã do que Lisuarte da Grécia? quem mais acutilado, nem mais acutilador do que D. Belianis? quem mais intrépido do que Perion de Gaula? quem mais cometedor de perigos do que Félix Marte de Hircânia? mais sincero do que Esplandian? mais arrojado do que Cirongildo da Trácia? mais bravo do que Rodamonte? mais prudente do que El-Rei Sobrinho? mais atrevido do que Reinaldo? mais invencível do que Roldão? mais galhardo e mais cortês do que Rogero, de quem hoje descendem os duques de Ferrara, como diz Turpin na sua cosmografia? Todos estes cavaleiros, e outros muitos, que eu poderia dizer, senhor cura, foram cavaleiros andantes, luz e glória da cavalaria. Destes, ou doutros como estes, quisera eu que fossem os do meu arbítrio, que, a sê-lo, Sua Majestade se acharia bem servido, e se lhe forraria muita despesa, e o turco depenaria as barbas; e com isto
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