Pouco faltava por ler da novela, quando do quarto onde jazia D. Quixote adormecido saiu Sancho Pança todo alvoroçado a gritar:
— Acudam, senhores! depressa! valham a meu amo, que anda metido na mais renhida batalha que estes olhos nunca viram! Deus louvado! pregou já uma cutilada no gigante inimigo da senhora Princesa Micomicadela, que lhe cortou a cabeça pelo meio como se fora um nabo.
— Que dizes, criatura? — perguntou o padre interrompendo a leitura — O Sancho está em si? como diabo pode ser isso que dizeis, se o gigante está a duas mil léguas daqui?
Neste comenos ouviu-se do aposento um grande ruído, e a voz de D. Quixote que dizia em altos gritos:
— Espera, ladrão, malandrino, velhacão; estás seguro; não te há-de valer a tua cimitarra.
E nisto soavam pelas paredes grandes cutiladas.
— Não têm que pôr-se a escutar — disse Sancho; — entrem a apartar a peleja ou a ajudar meu amo, que talvez já não seja preciso; sem dúvida o gigante a estas horas está morto, e dando contas a Deus da sua má vida. Vi-lhe o sangue em enxurrada pelo chão, e a cabeça cortada e caída para a banda; é tamanha como um grande odre de vinho.
— Dêem cabo de mim — exclamou o vendeiro — se D. Quixote ou D. Diabo não deu alguma cutilada em alguns dos odres do tinto que lhe estavam cheios à cabeceira. Aposto que não é senão o meu vinho o que se figurou sangue a este palerma.
Assim dizendo, entrou no aposento com todos atrás de si, e acharam a D. Quixote no mais extravagante vestuário do mundo: estava em camisa, que não era tão comprida, que por diante lhe cobrisse inteiramente as coxas, e por detrás faltavam seis dedos.