CAPÍTULO L - Das discretas altercações que D. Quixote e o cônego tiveram, com outros sucessos. — Boa vai ela — respondeu D. Quixote — os livros que estão impressos com licença dos reis, e com aprovação daqueles a quem se enviam, e que com gosto geral são lidos e celebrados por grandes e pequenos, pobres e ricos, letrados e ignorantes, plebeus e cavaleiros, e, finalmente, por todo o gênero de pessoas de qualquer estado e condição que sejam, haviam de ser mentirosos, tendo de mais a mais tanta aparência de verdade, pois nos dizem quem foram os pais e as mães, os parentes e a pátria e a idade dos cavaleiros, e dia a dia minuciosamente as façanhas que praticaram, e o sítio onde as praticaram? Cale-se Vossa Mercê, não diga semelhante blasfêmia, e creia-me, que nisto lhe aconselho o que deve fazer como discreto; senão, leia-os, e veja o prazer que a sua leitura lhe dá. Pois diga-me, há maior contentamento do que dizermos: aqui se nos mostra agora, como se o estivéssemos vendo, um grande lago a ferver em borbotões, e a nadarem nesse lago serpentes, cobras e lagartos e outros muitos animais ferozes e espantosos, e sair do meio do lago uma voz tristíssima, que diz: “Quem quer que sejas, cavaleiro, que o temeroso lago estás mirando, se queres alcançar o bem que debaixo destas negras águas se encobre, mostra o valor do teu forte peito, e arroja-te ao meio do negro e inflamado líquido; porque, se assim o não fizeres, não serás digno de ver as altas maravilhas que em si encerram e contêm os sete castelos das sete fadas, que debaixo desta negrura jazem”; e que, apenas o cavaleiro acaba de ouvir a voz, sem mais reflexões, e sem considerar o perigo a que se arrisca, a até sem despir as fortes e pesadas armas, encomendando-se