LIVRO QUARTO / CAPÍTULO XXVIII - Que trata da nova e agradável aventura sucedida na mesma serra ao cura e ao barbeiro. DITOSOS e felicíssimos tempos, em que ao mundo veio o tão audaz cavaleiro D. Quixote de la Mancha pela sua mui honrada determinação de restituir ao mundo a já quase esquecida ordem da cavalaria andante! Saboreamos nós agora, nesta idade tão falta de passatempos alegres, a doçura de estarmos lendo a sua verdadeira história e os contos que nela se travam como episódios; estes em boa parte não são menos agradáveis, artificiosos e verdadeiros que a história mesma.
Conta ela, prosseguindo o seu tortuoso fio, que tanto como o cura começava de preparar-se para consolar a Cardênio, o atalhou uma voz, que lhe chegou aos ouvidos, e que em tons magoados se lastimava assim:
— Ai, Deus! será possível ter eu já achado lugar, em que sepulte a ocultas este corpo, que tão sobreposse vou arrastando? espero que sim, se me não mente a soledade que estas serras me afiançam. Ai desditosa! quão mais agradável companhia não farão estas penhas e moitas ao meu sentimento, pois me proporcionarão comunicar estas queixas com o céu, e não a criaturas humanas!
Na terra já não há com quem se possa tomar conselho nas incertezas, alívio nos queixumes, nem remédio na desgraça.
Tudo isto ouviram distintamente o cura e os mais que ali eram; e por lhes parecer que perto dali estava a pessoa que tais queixas proferia, se levantaram para ir ter com ela. Não tinham andado vinte passos, quando de trás de um penhasco viram sentado ao pé de um freixo um mancebo entrajado à lavradora, ao qual, por estar com a cabeça baixa, a lavar os pés num regatinho, não puderam imediatamente divisar o rosto. Aproximaram-se-lhe tão calados, que não foram dele pressentidos, de atento que estava na sua lavagem dos pés; e tais eram eles, que não pareciam senão dois pedaços de puro cristal entre as outras pedras da corrente.