— Mais talhado estava Vossa Mercê — disse Sancho — para pregador, que para cavaleiro andante.
— De tudo sabiam e devem saber os cavaleiros andantes — disse D. Quixote — pois cavaleiro andante houve nos passados séculos, que se detinha a fazer um sermão ou prática no meio duma estrada real, como se fora graduado pela Universidade de Paris; donde se infere que nem a lança dana à pena, nem a pena à lança.
— Ora bem; seja assim como Vossa Mercê diz — respondeu Sancho — mas vamo-nos já daqui, e procuremos onde se há-de ficar esta noite. Permita Deus que seja em parte onde não haja mantas, nem manteadores, nem mouros encantados, que, se os houver, dou ao diabo a cartada.
— Pede-o tu a Deus, filho — disse D. Quixote — e vamos para onde tu quiseres, que desta vez quero deixar à tua escolha o albergar-nos. Mas chega cá a mão, e apalpa-me com o dedo; vê bem quantos queixais me faltam deste lado direito no queixo de cima; ali é que me dói.
Meteu Sancho os dedos, e, estando a apalpar, lhe disse:
— Quantos queixais costumava Vossa Mercê ter deste lado?
— Quatro — respondeu D. Quixote — afora a presa; todos inteiros e muito sãos.
— Olhe Vossa Mercê bem o que diz, senhor — respondeu Sancho.
— Digo quatro, se não eram cinco — respondeu D. Quixote — porque em toda a minha vida nunca me tiraram dente da boca, nem me caiu nenhum, nem me apodreceu.