Quem ouvisse o passado discurso de D. Quixote, decerto o consideraria pessoa mui assisada e cordata. Mas, como muitas vezes se tem observado no decurso desta grande história, só disparatava no que dizia respeito à cavalaria, e em tudo o mais mostrava ter claro e desenfadado entendimento, de maneira que a cada passo as suas obras lhe desacreditavam o juízo e o juízo lhe condenava as obras; mas nestes segundos conselhos que deu a Sancho, manifestou grande donaire e ostentou a sua discrição e a sua loucura em todo o seu brilho. Sancho escutava-o atentissimamente e procurava conservar na memória os seus conselhos, como quem tencionava segui-los e aproveitá-los no seu governo. Prosseguiu, pois, D. Quixote, e disse:
— Pelo que toca ao modo como hás-de governar a tua pessoa e a tua casa, Sancho, primeiro te recomendo que sejas asseado e que cortes as unhas, sem as deixar crescer como fazem alguns, a quem a sua ignorância persuadiu que as unhas grandes lhes alindam as mãos, como se essas excrescências que eles deixavam de cortar fossem unhas, sendo apenas garras de milhafre: abuso porco e extraordinário. Não andes, Sancho, desapertado, que o fato descomposto, de desmazelado ânimo dá indícios, a não ser que essa negligência seja prova de grande dissimulação, como se julgou de Júlio César. Torna discretamente o pulso ao que pode render o teu ofício, e se chegar para dares libré aos teus criados, dá-lha honesta e proveitosa, antes do que vistosa e bizarra, e reparte-a pelos criados e pelos pobres, quero dizer que, se hás-de vestir seis pajens, veste só três, e veste também três pobres, e assim terás pajens para o céu e para a terra; e este novo modo de dar libré não o entendem os vaidosos.