Era a noite um pouco escura, apesar de estar a lua no céu, mas não em sítio em que pudesse ser vista, que às vezes a senhora Diana vai passear para os antípodas e deixa os montes negros e os vales escuros. Satisfez D. Quixote as reclamações da natureza, dormindo o primeiro sono sem dar lugar ao segundo, bem às avessas de Sancho, que nunca teve segundo sono, porque dormia desde o cair da noite até ao romper da manhã, fato em que se mostravam a sua boa compleição e poucos cuidados. Os de D. Quixote desvelaram-no tanto, que acordou Sancho e disse-lhe:
— Estou maravilhado, Sancho, da liberdade da tua condição. Imagino que és feito de mármore ou de duro bronze, coisas que não têm movimento nem sentimento algum. Velo quando tu dormes, choro quando cantas, desmaio de fraqueza quando estás farto. É próprio de bons criados ajudar seus amos a sofrer as suas mágoas e sentir o que eles sentirem, ao menos para não parecer mal. Vê a serenidade desta noite, a solidão em que estamos, que nos convidam a intercalar no nosso sono alguma vigília. Levanta-te, por vida tua, afasta-te daqui um pedaço e, com ânimo e denodo, dá em ti mesmo duzentos ou trezentos açoites, por conta dos do desencantamento de Dulcineia, e isto peço-to rogando, que não quero travar luta contigo, como da outra vez, porque sei que tens a mão pesada.
Depois de te haveres açoitado, passaremos o resto da noite, cantando eu a minha ausência e tu a tua firmeza, dando desde já princípio ao exercício pastoril que seguiremos na nossa aldeia.
— Senhor: eu não sou religioso, para me levantar, no meio do meu sono, e açoitar-me, nem também me parece que do extremo do rigor dos açoites se possa passar para o outro extremo da música.