O Discurso do Método - Cap. 3: Capítulo 3 Pág. 26 / 71

E, enfim, não saberia cercear os meus desejos, nem estar contente, se não tivesse percorrido um caminho pelo qual, julgando estar seguro da aquisição de todos os conhecimentos de que fosse capaz, pensava estar também, pelo mesmo método, seguro da aquisição de todos os verdadeiros bens que em alguma ocasião se encontrassem ao meu alcance; tanto mais que, a nossa vontade não estando propensa a seguir ou fugir a qualquer coisa, a não ser se o nosso entendimento a represente como boa ou má, é suficiente bem julgar para bem agir, e julgar o melhor possível para também agir da melhor maneira, ou seja, para adquirir todas as virtudes e, ao mesmo tempo, todos os outros bens que se possam adquirir; e, quando se tem certeza de que é assim, não se pode deixar de ficar contente.

Depois de haver-me assim assegurado destas máximas, e de tê-las separado, com as verdades da fé, que sempre foram as primeiras na minha crença, julguei que, quanto a todo o restante de minhas opiniões, podia livremente procurar desfazer-me delas. E, como esperava chegar melhor ao fim dessa tarefa conversando com os homens, do que prosseguindo por mais tempo fechado no quarto aquecido onde me haviam surgido esses pensamentos, recomecei a viajar quando o inverno ainda não terminara. E, em todos os nove anos que se seguiram, não fiz outra coisa a não ser girar pelo mundo, daqui para ali, tentando ser mais espectador do que ator em todas as comédias que nele se representam; e, refletindo particularmente, em cada matéria, sobre o que podia torná-la suspeita e propiciar a oportunidade de nos enganarmos, ao mesmo tempo extirpava do meu espírito todos os equívocos que até então nele se houvessem instalado. Não que imitasse, para tanto, os céticos, que duvidam só por duvidar e fingem ser sempre indecisos: pois, ao contrário, todo o meu propósito propendia apenas a me certificar e remover a terra movediça e a areia, para encontrar a rocha ou a argila.





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