Dom Quixote de La Mancha – Livro Primeiro - Cap. 19: CAPÍTULO XVII - Em que se prosseguem os inumeráveis trabalhos, que o bravo D. Quixote e seu escudeiro Sancho Pança passaram na venda, que o fidalgo por seu mal cuidara ser castelo. Pág. 144 / 590

a minha parentela! para que consentiu que eu o provasse?

A este tempo entrou a bebida a fazer o seu efeito, e começou o escudeiro a desaguar-se por ambos os canais com tanta pressa, que a esteira de junco, em que de novo se tinha deitado, e a manta, nunca mais serviram. Suava e tressuava com tais paroxismos e acidentes, que não só ele mas todos pensaram ser aquela a última da sua vida.

Durou-lhe a tormenta quase duas horas, acabadas as quais não ficou como seu amo, mas tão moído e quebrantado, que mal se podia ter; D. Quixote, que, segundo se disse, se sentia aliviado e são, quis imediatamente partir-se a buscar aventuras, por lhe parecer que todo o tempo que ali se demorava era roubado ao mundo e aos necessitados do seu amparo; e mais, com a confiança que lhe dava agora o seu bálsamo.

Forçado deste desejo, aparelhou ele mesmo ao Rocinante, albardou o jumento do escudeiro e ajudou-o a vestir-se e montar. Pôs-se a cavalo, e, chegando a um canto da venda, apoderou-se duma chuçazita que ali estava para lhe servir de lança.

Olhavam para ele todos quantos se achavam na venda, que passavam de vinte pessoas; considerava-o não menos a filha do vendeiro, e ele também não tirava dela os olhos; de quando em quando arrojava um suspiro, que parecia ser arrancado do fundo das entranhas, supondo todos que seria da dor que sentia nas costelas; pelo menos assim o cuidavam aqueles que o tinham visto emplastrar a noite dantes.

Logo que estiveram a cavalo, posto D. Quixote à porta da venda, chamou pelo dono da casa, e com voz mui repousada e grave lhe disse:

— Muitas e mui grandes, senhor alcaide, são as mercês que neste vosso castelo hei recebido; e declaro-me em grande obrigação de agradecido para todos os dias de minha vida.





Os capítulos deste livro

PRÓLOGO 1 AO LIVRO DE D. QUIXOTE DE LA MANCHA 10 PRIMEIRA PARTE / LIVRO PRIMEIRO / CAPÍTULO I - Que trata da condição e exercício do famoso fidalgo D. Quixote de La Mancha. 15 CAPÍTULO II - Que trata da primeira saída que de sua terra fez o engenhoso D. Quixote. 21 CAPÍTULO III - No qual se conta a graciosa maneira que teve D. Quixote em armar-se cavaleiro. 28 CAPÍTULO IV - Do que sucedeu ao nosso cavaleiro saindo da venda. 36 CAPÍTULO V - Em que se prossegue a narrativa da desgraça do nosso cavaleiro. 44 CAPÍTULO VI - Da curiosa e grande escolha que o padre cura e o barbeiro fizeram na livraria do nosso engenhoso fidalgo. 49 CAPÍTULO VII - Da segunda saída do nosso bom cavaleiro D. Quixote de la Mancha. 57 CAPÍTULO VIII - Do bom sucesso que teve o valoroso D. Quixote na espantosa e jamais imaginada aventura dos moinhos de vento, com outros sucessos dignos de feliz recordação. 63 LIVRO SEGUNDO / CAPÍTULO IX - Em que se conclui a estupenda batalha que o galhardo biscaínho e o valente manchego tiveram. 73 CAPÍTULO X - Graciosas práticas entre D. Quixote e seu escudeiro Sancho Pança. 79 CAPÍTULO XI - Do que a D. Quixote sucedeu com uns cabreiros. 85 CAPÍTULO XII - Do que referiu um cabreiro aos que estavam com D. Quixote. 92 CAPÍTULO XIII - Em que se dá fim ao caso da pastora Marcela, com outros sucessos. 100 CAPÍTULO XIV - Onde se põem os versos desesperados do pastor defunto, com outros imprevistos sucessos. 111 LIVRO TERCEIRO / CAPÍTULO XV - Em que se conta a desgraçada aventura, que a D. Quixote ocorreu com uns desalmados iangueses. 121 CAPÍTULO XVI - Do que sucedeu ao engenhoso fidalgo na venda que ele imaginava ser castelo. 130 CAPÍTULO XVII - Em que se prosseguem os inumeráveis trabalhos, que o bravo D. Quixote e seu escudeiro Sancho Pança passaram na venda, que o fidalgo por seu mal cuidara ser castelo. 139 CAPÍTULO XVIII - Onde se contam as razões que passou Sancho Pança com seu senhor D. Quixote com outras aventuras dignas de ser contadas. 149 CAPÍTULO XIX - Das discretas razões que Sancho passava com o amo e da aventura que lhes sucedeu com um defunto, e outros acontecimentos famosos. 161 CAPÍTULO XX - Da nunca vista nem ouvida aventura que jamais cavaleiro algum famoso no mundo acabou, e a concluiu, quase sem perigo, D. Quixote de la Mancha. 170 CAPÍTULO XXI - Que trata da alta aventura e preciosa ganância do elmo de Mambrino, com outras coisas sucedidas ao nosso invencível cavaleiro. 186 CAPÍTULO XXII - Da liberdade que D. Quixote deu a muitos desafortunados, que iam levados contra sua vontade onde eles por si não quereriam ir. 200 CAPÍTULO XXIII - Do que ao famoso D. Quixote sucedeu em Serra Morena, que foi uma das mais raras aventuras coutadas nesta verdadeira história. 213 CAPÍTULO XXIV - Em que se prossegue a aventura da Serra Morena. 227 CAPÍTULO XXV - Que trata das estranhas coisas que em Serra Morena sucederam ao valente cavaleiro da Mancha, e da imitação que fez da penitência de Beltenebrós. 238 CAPÍTULO XXVII - De como se houveram o cura e o barbeiro, com outras coisas dignas de ser contadas nesta grande história. 266 LIVRO QUARTO / CAPÍTULO XXVIII - Que trata da nova e agradável aventura sucedida na mesma serra ao cura e ao barbeiro. 285 CAPÍTULO XXIX - Que trata do gracioso artifício e ordem que se teve em tirar o nosso amorado cavaleiro da muito áspera penitência em que se havia posto. 302 CAPÍTULO XXX - Que trata da discrição da formosa Dorotéia, com outras coisas de muito sabor e passatempo. 316 CAPÍTULO XXXI - Das saborosas conversações que houve entre D. Quixote e o seu escudeiro com outros sucessos. 328 CAPÍTULO XXXII - Que trata do que na venda sucedeu a todo o rancho de D. Quixote. 339 CAPÍTULO XXXIII - Onde se conta a novela do curioso impertinente. 347 CAPÍTULO XXXIV - Em que se prossegue a novela do curioso impertinente. 369 CAPÍTULO XXXV - Em que se trata da grande e descomunal batalha que teve D. Quixote com uns odres de vinho tinto, e se dá fim à novela do curioso impertinente. 390 CAPÍTULO XXXVI - Que trata de outros sucessos raros que na taverna sucederam. 401 CAPÍTULO XXXVII - No qual se prossegue com a história da famosa infanta de Micomicão, e de outras graciosas aventuras. 415 CAPÍTULO XXXVIII - Em que se continua o discurso que fez D. Quixote sobre as armas e as letras. 429 CAPÍTULO XXXIX - Onde o cativo conta a sua vida e sucessos dela. 435 CAPÍTULO XL - No qual se conta a história do cativo. 446 CAPÍTULO XLI - No qual o cativo continua a sua história. 461 CAPÍTULO XLII - Em que se trata do mais que sucedeu na estalagem, e de outras coisas dignas de serem conhecidas. 485 CAPÍTULO XLIII - Onde se conta a agradável história do moço das mulas com outros estranhos sucessos acontecidos na venda. 494 CAPÍTULO XLIV - Onde se prosseguem os inauditos sucessos da venda. 505 CAPÍTULO XLV - Onde se acaba de averiguar a dúvida do elmo de Mambrino e da albarba, e de outras aventuras sucedidas com toda a verdade. 515 CAPÍTULO XLVI - Da notável aventura dos quadrilheiros, e da grande ferocidade do nosso bom cavaleiro D. Quixote. 524 CAPÍTULO XLVII - Do modo estranho como foi encantado D. Quixote de la Mancha, com outros sucessos. 534 CAPÍTULO XLVIII -Onde prossegue o cônego no assunto dos livros de cavalaria, com outras coisas dignas do seu engenho. 545 CAPÍTULO XLIX - Onde se trata do discreto colóquio que Sancho Pança teve com seu amo D. Quixote. 554 CAPÍTULO L - Das discretas altercações que D. Quixote e o cônego tiveram, com outros sucessos. 563 CAPÍTULO LI - Que trata do que contou o cabreiro a todos os que levavam D. Quixote. 571 CAPÍTULO LII - Da pendência que teve D. Quixote com o cabreiro, com a rara aventura dos penitentes, a que felizmente deu fim à custa do seu suor. 578