Dom Quixote de La Mancha – Livro Primeiro - Cap. 28: CAPÍTULO XXVII - De como se houveram o cura e o barbeiro, com outras coisas dignas de ser contadas nesta grande história. Pág. 283 / 590
Falta-me, é verdade, o juízo para a conhecer; mas a necessidade natural me diz ser mantimento, e me aviva desejo de apetecê-lo, e vontade para o tomar. Outras vezes, segundo eles me contam, quando me tomam com juízo, salto-lhes ao caminho e os roubo à força, ainda que eles mo queiram dar de boa vontade, que já para isso mo traziam do lugar às malhadas. Desta maneira vou passando os restos da miserável existência até que o céu seja servido conduzi-la ao descanso último, ou de mo chamar à lembrança, para que a ela me não tornem a formosura e traição de Lucinda, e o agravo de D. Fernando. Se Deus tal me concede sem me tirar a vida, eu aplicarei o pensamento a discursos de mais proveito. A não ser assim, não há senão rogar à Providência que tenha dó da minha alma, que eu em mim não sinto valor nem força para tirar o corpo desta estreiteza, em que por meu gosto o quis pôr. Aqui está, ó senhores meus, a amarga história da minha desgraça. Dizei-me agora se a achais tal, que se possa recordar com menos sentimento que o meu; não vos canseis em aconselhar-me o que a razão vos mostrar por bom para meu remédio, porque tanto há-de aproveitar comigo, como aproveita o curativo receitado por um médico de fama ao enfermo que recuse recebê-lo. Não quero saúde sem Lucinda; e como ela gosta de ser de outro, sendo, ou devendo ser minha, deixem-me gostar a mim de ser da desventura, podendo ser da felicidade. Ela quis com a sua mudança tornar estável a minha perdição; eu quererei com procurar perder-me satisfazer a sua vontade. Aprenderão os vindouros que a mim só faltou o que a todos os desditados sobra: a eles costuma ser consolação a certeza de não poderem alcançá-la; e em mim é causa de novos sentimentos e males, porque até penso que nem com a morte se me hão-de acabar.