Dom Quixote de La Mancha – Livro Primeiro - Cap. 5: CAPÍTULO III - No qual se conta a graciosa maneira que teve D. Quixote em armar-se cavaleiro. Pág. 32 / 590

no chão tão maltratado, que, a pregar-lhe segundo, não houvera que chamar cirurgião para o despenar; feito o que, apanhou e repôs no seu lugar as suas armas, e tornou-se ao passeio com a mesma serenidade do princípio.

Dali a pouco, sem se saber o que era passado, porque o arrieiro estava ainda sem acordo, chegou outro com igual intenção de dar água aos seus machos, e tanto como buliu nas armas para desempachar a pia, D. Quixote, sem dizer palavra, e sem pedir auxílio a ninguém, largou outra vez a adarga, e alçou de novo a lança, e, sem fazê-la pedaços, escangalhou em mais de três a cabeça deste segundo arrieiro, porque lha abriu em quatro.

Ao ruído, acudiu toda a gente, e o próprio vendeiro.

Vendo isto D. Quixote, embraçou a sua adarga, e, metendo a mão à espada, disse:

— Ó senhora da formosura, esforço e vigor do meu debilitado coração, lance é este para pordes os olhos da vossa grandeza neste cativo cavaleiro, que a tamanha aventura é chegado!

Com isto recobrou, a seu parecer, tanto ânimo, que nem que o acometessem todos os arrieiros do mundo, fizera pé atrás.

Os companheiros dos feridos, vendo-os naquele estado, começaram de longe a chover pedras sobre D. Quixote, o qual, o melhor que podia, se ia delas anteparando com a sua adarga, e não ousava apartar-se da pia, para não desamparar as suas armas.

Vozeava o vendeiro para que deixassem o homem, porque já lhes tinha dito que era doido, e por doido se livraria, ainda que os matasse a todos.

Mais alto porém bradava D. Quixote, chamando-lhes aleivosos e traidores, e acrescentava que o senhor do castelo era um covarde, e mal nascido cavaleiro, por consentir que assim se tratassem cavaleiros andantes; e que a ter já recebido a ordem de cavalaria, ele o ensinara.





Os capítulos deste livro

PRÓLOGO 1 AO LIVRO DE D. QUIXOTE DE LA MANCHA 10 PRIMEIRA PARTE / LIVRO PRIMEIRO / CAPÍTULO I - Que trata da condição e exercício do famoso fidalgo D. Quixote de La Mancha. 15 CAPÍTULO II - Que trata da primeira saída que de sua terra fez o engenhoso D. Quixote. 21 CAPÍTULO III - No qual se conta a graciosa maneira que teve D. Quixote em armar-se cavaleiro. 28 CAPÍTULO IV - Do que sucedeu ao nosso cavaleiro saindo da venda. 36 CAPÍTULO V - Em que se prossegue a narrativa da desgraça do nosso cavaleiro. 44 CAPÍTULO VI - Da curiosa e grande escolha que o padre cura e o barbeiro fizeram na livraria do nosso engenhoso fidalgo. 49 CAPÍTULO VII - Da segunda saída do nosso bom cavaleiro D. Quixote de la Mancha. 57 CAPÍTULO VIII - Do bom sucesso que teve o valoroso D. Quixote na espantosa e jamais imaginada aventura dos moinhos de vento, com outros sucessos dignos de feliz recordação. 63 LIVRO SEGUNDO / CAPÍTULO IX - Em que se conclui a estupenda batalha que o galhardo biscaínho e o valente manchego tiveram. 73 CAPÍTULO X - Graciosas práticas entre D. Quixote e seu escudeiro Sancho Pança. 79 CAPÍTULO XI - Do que a D. Quixote sucedeu com uns cabreiros. 85 CAPÍTULO XII - Do que referiu um cabreiro aos que estavam com D. Quixote. 92 CAPÍTULO XIII - Em que se dá fim ao caso da pastora Marcela, com outros sucessos. 100 CAPÍTULO XIV - Onde se põem os versos desesperados do pastor defunto, com outros imprevistos sucessos. 111 LIVRO TERCEIRO / CAPÍTULO XV - Em que se conta a desgraçada aventura, que a D. Quixote ocorreu com uns desalmados iangueses. 121 CAPÍTULO XVI - Do que sucedeu ao engenhoso fidalgo na venda que ele imaginava ser castelo. 130 CAPÍTULO XVII - Em que se prosseguem os inumeráveis trabalhos, que o bravo D. Quixote e seu escudeiro Sancho Pança passaram na venda, que o fidalgo por seu mal cuidara ser castelo. 139 CAPÍTULO XVIII - Onde se contam as razões que passou Sancho Pança com seu senhor D. Quixote com outras aventuras dignas de ser contadas. 149 CAPÍTULO XIX - Das discretas razões que Sancho passava com o amo e da aventura que lhes sucedeu com um defunto, e outros acontecimentos famosos. 161 CAPÍTULO XX - Da nunca vista nem ouvida aventura que jamais cavaleiro algum famoso no mundo acabou, e a concluiu, quase sem perigo, D. Quixote de la Mancha. 170 CAPÍTULO XXI - Que trata da alta aventura e preciosa ganância do elmo de Mambrino, com outras coisas sucedidas ao nosso invencível cavaleiro. 186 CAPÍTULO XXII - Da liberdade que D. Quixote deu a muitos desafortunados, que iam levados contra sua vontade onde eles por si não quereriam ir. 200 CAPÍTULO XXIII - Do que ao famoso D. Quixote sucedeu em Serra Morena, que foi uma das mais raras aventuras coutadas nesta verdadeira história. 213 CAPÍTULO XXIV - Em que se prossegue a aventura da Serra Morena. 227 CAPÍTULO XXV - Que trata das estranhas coisas que em Serra Morena sucederam ao valente cavaleiro da Mancha, e da imitação que fez da penitência de Beltenebrós. 238 CAPÍTULO XXVII - De como se houveram o cura e o barbeiro, com outras coisas dignas de ser contadas nesta grande história. 266 LIVRO QUARTO / CAPÍTULO XXVIII - Que trata da nova e agradável aventura sucedida na mesma serra ao cura e ao barbeiro. 285 CAPÍTULO XXIX - Que trata do gracioso artifício e ordem que se teve em tirar o nosso amorado cavaleiro da muito áspera penitência em que se havia posto. 302 CAPÍTULO XXX - Que trata da discrição da formosa Dorotéia, com outras coisas de muito sabor e passatempo. 316 CAPÍTULO XXXI - Das saborosas conversações que houve entre D. Quixote e o seu escudeiro com outros sucessos. 328 CAPÍTULO XXXII - Que trata do que na venda sucedeu a todo o rancho de D. Quixote. 339 CAPÍTULO XXXIII - Onde se conta a novela do curioso impertinente. 347 CAPÍTULO XXXIV - Em que se prossegue a novela do curioso impertinente. 369 CAPÍTULO XXXV - Em que se trata da grande e descomunal batalha que teve D. Quixote com uns odres de vinho tinto, e se dá fim à novela do curioso impertinente. 390 CAPÍTULO XXXVI - Que trata de outros sucessos raros que na taverna sucederam. 401 CAPÍTULO XXXVII - No qual se prossegue com a história da famosa infanta de Micomicão, e de outras graciosas aventuras. 415 CAPÍTULO XXXVIII - Em que se continua o discurso que fez D. Quixote sobre as armas e as letras. 429 CAPÍTULO XXXIX - Onde o cativo conta a sua vida e sucessos dela. 435 CAPÍTULO XL - No qual se conta a história do cativo. 446 CAPÍTULO XLI - No qual o cativo continua a sua história. 461 CAPÍTULO XLII - Em que se trata do mais que sucedeu na estalagem, e de outras coisas dignas de serem conhecidas. 485 CAPÍTULO XLIII - Onde se conta a agradável história do moço das mulas com outros estranhos sucessos acontecidos na venda. 494 CAPÍTULO XLIV - Onde se prosseguem os inauditos sucessos da venda. 505 CAPÍTULO XLV - Onde se acaba de averiguar a dúvida do elmo de Mambrino e da albarba, e de outras aventuras sucedidas com toda a verdade. 515 CAPÍTULO XLVI - Da notável aventura dos quadrilheiros, e da grande ferocidade do nosso bom cavaleiro D. Quixote. 524 CAPÍTULO XLVII - Do modo estranho como foi encantado D. Quixote de la Mancha, com outros sucessos. 534 CAPÍTULO XLVIII -Onde prossegue o cônego no assunto dos livros de cavalaria, com outras coisas dignas do seu engenho. 545 CAPÍTULO XLIX - Onde se trata do discreto colóquio que Sancho Pança teve com seu amo D. Quixote. 554 CAPÍTULO L - Das discretas altercações que D. Quixote e o cônego tiveram, com outros sucessos. 563 CAPÍTULO LI - Que trata do que contou o cabreiro a todos os que levavam D. Quixote. 571 CAPÍTULO LII - Da pendência que teve D. Quixote com o cabreiro, com a rara aventura dos penitentes, a que felizmente deu fim à custa do seu suor. 578