Dom Quixote de La Mancha – Livro Primeiro - Cap. 16: CAPÍTULO XIV - Onde se põem os versos desesperados do pastor defunto, com outros imprevistos sucessos. Pág. 116 / 590
Se todas as belezas enamorassem e rendessem, seria um andarem as vontades confusas e desencaminhadas, sem saberem em que haviam de parar; porque, sendo infinitos os objetos formosos, infinitos haviam de ser os desejos; e, segundo eu tenho ouvido dizer, o verdadeiro amor não se divide, e deve ser voluntário, e não forçado. Sendo isto assim, como julgo que é, por que exigis que renda a minha vontade por força, obrigada só por dizerdes que me quereis bem? Dizei-me: se, assim como o céu me fez formosa, me fizera feia, seria justo queixar-me eu de vós por me não amardes? E de mais, deveis considerar que eu não escolhi a formosura que tenho; que, tal qual é, o céu ma deu gratuitamente, sem eu a pedir nem a escolher; assim como a víbora não há-de ser culpada da peçonha que tem, posto matar com ela, em razão de lhe ter sido dada pela natureza, tão pouco mereço eu ser repreendida por ser formosa, que a formosura na mulher honesta é como o fogo apartado, ou como a espada aguda, que nem ele queima, nem ela corta a quem se lhes não aproxima. A honra e as virtudes são adornos da alma, sem os quais o corpo não deve parecer formoso, ainda que o seja. Pois se a honestidade é uma das virtudes que ao corpo e alma mais adornam e aformosentam, por que há-de perdê-la a que é amada por formosa, para corresponder à intenção de quem, só por seu gosto, com todas as suas forças e indústrias, aspira a que a perca? Eu nasci livre; e para poder viver livre escolhi as soledades dos campos; as árvores desta montanha são a minha companhia; as claras águas destes arroios, meus espelhos; com as árvores e as águas comunico meus pensamentos e formosura. Sou fogo, mas apartado; espada, mas posta longe. Aos que tenho namorado com a vista, tenho-os com as palavras