Ambrósio, tanto como a avistou, disse num ímpeto de indignação:
— Vens experimentar, fero basilisco destes montes, se com a tua presença verterão ainda sangue as feridas deste miserável, a quem a tua crueldade tirou a vida? ou vens vangloriar-te, contemplando as cruéis façanhas da tua índole? ou desejas observar dessa altura, como Nero o incêndio de Roma, os efeitos da tua barbaridade? ou pisar arrogante este desastrado cadáver, como a ingrata filha fez ao de Sérvio Túlio? Dize já a que vens, ou o que é que mais te agrada, que por eu saber que os pensamentos de Crisóstomo nunca em vida deixaram de te obedecer, farei que, ainda depois da sua morte, por ele te obedeçam os que se chamaram, e foram seus amigos.
— Não venho, Ambrósio, a nada disso que dizes — respondeu Marcela — venho só a defender-me, e mostrar quão fora de razão andam todos os que me culpam do que penam, e da morte de Crisóstomo. Por isso, rogo a quantos aqui sois me atendais, que não será necessário muito tempo, nem muitas palavras, para persuadir de tão clara verdade os assisados. Fez-me o céu formosa, segundo vós outros encareceis; e tanto, que não está em vossa mão o resistirdes-me; e, pelo amor que me mostrais, dizeis (e até supondes) que esteja eu obrigada a corresponder-vos. Com o natural entendimento que Deus me deu, conheço que toda a formosura é amável; mas não entendo que em razão de ser amada seja obrigada a amar, podendo até dar-se que seja feio o namorado da formosura. Ora sendo o feio aborrecível, fica muito impróprio o dizer-se: “quero-te por formosa; e tu, ainda que eu o não seja, deves também amar-me”. Mas, ainda supondo que as formosuras sejam de parte a parte iguais, nem por isso hão-de correr iguais os desejos, porque nem todas as formosuras cativam; algumas alegram a vista, sem renderem as vontades.