— Que sangue e que chafariz estás tu para aí alanzoando, inimigo de Deus e dos seus santos? — disse o vendeiro — Não vês, ladrão, que o sangue e o chafariz não são senão esses odres, que para aí estão arrombados, e o meu rico vinho tinto que nada no quarto? Nadar vejo eu nos infernos a alma de quem mos arrombou.
— Não sei nada disso — respondeu Sancho — o que sei é que hei-de ser tão mofino, que, por não achar a cabeçorra do bruto, se me há-de desfazer o condado como sal na água.
O pobre Sancho acordado estava pior que o amo dormindo; efeito das promessas do patrão.
Desesperava-se o vendeiro de ver a fleuma do escudeiro e o malefício do fidalgo, e jurava que desta vez não havia de ser como da passada, irem-se embora sem lhe pagarem; que lhe não haviam de valer os privilégios da sua cavalaria para lhe não satisfazer tudo por junto, e até o que poderia custar a remendagem dos odres.
Segurava o cura as mãos a D. Quixote, o qual, supondo ter já finalizado a pendência, e estar perante a Princesa Micomicadela, se lançou em joelhos aos pés do eclesiástico, exclamando:
— Já pode a Vossa Grandeza, alta e poderosa senhora, viver desde hoje mais segura, porque já lhe não pode causar prejuízo esta mal nascida criatura; e eu também de hoje em diante me dou por quite da palavra que vos obriguei, pois, com a ajuda do alto Deus, e com o favor daquela por quem vivo, tão inteiramente para convosco me desempenhei.
— Não era o que eu dizia? — disse ouvindo aquelas palavra Sancho — vejam lá se eu estava borracho; vejam lá se meu amo não tem já o gigante na salmoura. Certos são os touros: o meu condado está na unha.
Quem não se havia de rir com os disparates daquele par? tal amo, tal moço! Riam-se todos, afora o taverneiro que se dava ao diabo.