Enfim, tanto fizeram, o barbeiro, Cardênio e o cura, que, a poder de trabalho, deram com D. Quixote na cama, ficando a dormir com mostras de grandíssimo cansaço.
Deixando-o pois a dormir, saíram para o portal da taverna com o fim de consolar a Sancho Pança de não haver encontrado a cabeça do gigante, mas inda tiveram mais que trabalhar em abater a ira do vendeiro, o qual estava desesperado por causa de assim morrerem os seus odres, vítimas de uma morte repentina; e a vendeira, gritando a bom gritar, dizia:
— Em mau ponto, em minguada hora, entrou em minha casa este cavaleiro andante, a quem meus olhos tão bom fora que nunca houveram visto, pois que tão caro ele me fica: da vez passada foi-se embora com o custo da ceia de uma noite, e da cama, palha e cevada, para ele e para o seu escudeiro, e para o rocim e o jumento, dizendo que era cavaleiro aventureiro (que má ventura lhe dê Deus a ele e a quantos aventureiros haja neste mundo) e que por isso não estava obrigado a pagar coisa alguma, porque assim o achava escrito nos aranzéis da cavalaria andantesca: agora por seu respeito veio um outro senhor e me levou a minha cauda, e, quando ma restituiu, entregou-ma com mais de dois quartos de real de prejuízo, toda pelada, de modo que não pode servir para o que meu marido a queria; e por fim e remate de tudo isto rompe-me os meus odres, e entorna-lhes o vinho todo pelo chão, que assim lhe veja eu derramado quanto sangue tem nas veias; e não se pense que pelos ossos de meu pai e honra de minha mãe não me hão-de pagar um quarto sobre outro, ou eu me não chamaria pelo nome que sou chamada, nem seria filha de quem sou.
Estas e outras razões dizia a taverneira com grande cólera, e era ajudada pela sua boa criada. A filha calava-se, e somente de quando em quando se sorria.