Dom Quixote de La Mancha – Livro Primeiro - Cap. 42: CAPÍTULO XLI - No qual o cativo continua a sua história. Pág. 479 / 590
dando-nos dois barris de água e algum biscoito; e o capitão, movido por estranha compaixão, deu a Zoraida, no ato do desembarque, uns quarenta escudos de ouro, e não consentiu que os soldados lhe tirassem estes vestidos que ela agora traz. Entramos no baixel, demos-lhe graças pela bondade com que afinal nos trataram, mostrandonos mais agradecidos do que queixosos: fizeram-se eles ao largo, seguindo a derrota do estreito, e nós não tendo por norte senão a terra que tínhamos adiante dos olhos, com tanta pressa vogamos, que ao pôr do sol estávamos tão perto que, segundo nos pareceu, podíamos chegar a ela antes de ser muito de noite; mas, como não houvesse luar e o céu estivesse escuro, e ignorando nós em que paragem nos achávamos, não nos pareceu coisa segura meter a proa à terra, como queriam muitos dos nossos, os quais disseram em abono do seu parecer que atracássemos, mesmo que fosse a umas rochas e longe do povoado, assim nos livraríamos do temor que com bons fundamentos devíamos ter de que por ali andassem baixéis de corsários de Tetuã, que costumavam anoitecer em Barbaria e amanhecer nas costas de Espanha, onde de ordinário fazem presa e vão dormir a suas casas; mas dos muitos pareceres que houve, aquele que se aproveitou foi o de que nos fôssemos pouco a pouco aproximando e que desembarcássemos aonde pudéssemos melhor fazê-lo e o sossego do mar o permitisse. Assim se fez, e ainda não seria meia-noite quando chegamos ao pé duma muito disforme e alta montanha; mas não tão encravada no mar que nos negasse um pouco de espaço para comodamente fazermos o desembarque. Encalhamos na areia, saímos todos para terra e beijamo-la, e derramando lágrimas de contentamento todos demos graças a Deus Nosso Senhor pelos benefícios incomparáveis