Digo pois, senhor meu da minha alma — continuou o cabreiro — que houve em nossa aldeia um lavrador ainda mais rico do que o pai de Crisóstomo, e que se chamava Guilherme, e a quem Deus, ainda por cima das muitas e grandes riquezas, concedeu uma filha, que logo ao nascedouro ficou sem a mãe, que fora a mais honrada mulher que houve por todos estes arredores. Parece-me que ainda a estou vendo, com aquela cara, que de uma banda tinha o sol, e da outra a lua; e, além de tudo mais, grande arranjadeira, e ao mesmo tempo muito amiguinha dos pobres; pelo que entendo que a estas horas deve estar a sua alma a gozar-se de Deus no outro mundo. Com pesar da morte de tão boa mulher, morreu o marido Guilherme, deixando a filha Marcela, pequena e rica, em poder de um tio sacerdote, Beneficiado no nosso lugar. Cresceu a menina tanto em formosura, que nos fazia lembrar da de sua mãe, que também nisso se extremara; e já se futurava que a herdeira a excederia.
E assim sucedeu que aos catorze ou quinze anos ninguém a via, que não desse graças a Deus de ter criado tamanha lindeza. Quase todos ficavam enamorados e perdidos por ela. Guardava-a seu tio com muito recato e recolhimento; mas, apesar disso, a fama da sua muita beleza se estendeu de maneira que, assim por ela como por suas muitas riquezas, não somente pelos do nosso povo, senão até pelos de muitas léguas em redondo, e dos melhores dentre eles, era rogado, solicitado e importunado o tio para lha dar em casamento. Ele porém, que era bom cristão às direitas, ainda que desejava casá-la cedo, não queria efetuá-lo sem consentimento dela, vendo-a na idade de acertar na escolha. Ele por si nenhum caso fazia dos interesses que poderia dar-lhe o administrar os haveres da sobrinha enquanto solteira;