Quixote, disse:
— Conte-me Vossa Mercê, senhor cavaleiro, no número dos seus maiores servidores, porque há muitos dias que lhe sou afeiçoado, tanto pela sua fama, como pelas suas façanhas.
— Diga-me Vossa Mercê quem é — respondeu D. Quixote — para que a minha cortesia corresponda aos seus merecimentos.
Tornou o moço que era o músico e o panegirista da noite anterior.
— É certo — respondeu D. Quixote — que Vossa Mercê tem uma voz excelente; mas o que cantou é que me parece que não foi muito a propósito; porque nada têm que ver as estâncias de Garcilaso com a morte desta senhora.
— Não se maravilhe disso Vossa Mercê — respondeu o músico — que já se usa, entre os intonsos poetas do nosso tempo, escrever cada qual como quer e furtar a quem lhe parece, venha ou não venha a pêlo; e não há necedade que escrevam ou cantem, que se não atribua a licença poética.
Queria responder D. Quixote; mas estorvaram-no o duque e a duquesa, que vieram vê-lo; e houve entre eles larga e agradável prática, em que Sancho disse tais graças e malícias, que ficaram de novo admirados os duques, tanto da sua simplicidade, como da sua agudeza. D. Quixote pediu-lhes que lhe dessem licença para partir nesse mesmo dia porque, aos vencidos cavaleiros como ele, mais convinha habitar numa toca, do que em palácios reais. Deram-lha com muito boa vontade e a duquesa perguntou-lhe se Altisidora lhe caíra em graça.
— Senhora — respondeu ele — saiba Vossa Senhoria que todo o mal desta donzela nasce da sua ociosidade, cujo remédio é a ocupação contínua e honesta. Disse-me agora que se usam rendas no inferno; e, como ela as deve saber fazer, não as largue da mão, que, ocupada em voltear os bilros, não voltearão na sua fantasia as imagens daquilo que muito bem quer; esta é a verdade, este o meu parecer, este o meu conselho.