Já sou inimigo de Amadis de Gaula e da infinita caterva da sua linhagem; já me são odiosas todas as histórias profanas de cavalaria andante; já conheço a minha necedade e o perigo em que me pôs o tê-las lido; já por misericórdia de Deus, e bem escarmentado, as abomino.
Quando os três lhe ouviram dizer isto, julgaram que alguma loucura nova o salteara. E Sansão disse-lhe:
— Agora, senhor D. Quixote, que temos notícia de que está desencantada a senhora Dulcineia, sai-se Vossa Mercê com essa! e agora, que estamos tão a pique de ser pastores, para passar a vida cantando como uns príncipes, quer Vossa Mercê fazer-se ermitão? Cale-se, por vida sua, torne a si, e deixe-se de contos.
— Os contos, que até agora têm sido verdadeiros só em meu prejuízo — respondeu D. Quixote — espero que a minha morte os mude, com o auxílio do céu, em meu proveito. Sinto, senhores, que a morte vem correndo; deixem-se de burlas e tragam-me um padre a quem eu me confesse e um tabelião que faça o meu testamento, que em transes como este não há-de um homem brincar com a sua alma; e assim, peço que, enquanto o senhor cura me atende, vão depressa buscar-me um notário.
Olhavam uns para os outros, admirados das razões de D. Quixote, e sempre o quiseram acreditar, apesar de ainda estarem em dúvida; e um dos sinais por onde conjeturaram que ele morria, foi por ele se ter mudado com tanta facilidade de doido em assisado, porque às razões já mencionadas acrescentou outras, tão bem ditas, tão cristãs e de tanto acerto, que de todo lhes tirou as dúvidas e lhes fez crer que estava bom.
Mandou o cura sair toda a gente, ficou sozinho com ele e confessou-o. O bacharel foi procurar o tabelião e dali a pouco voltou trazendo-o e a Sancho Pança também; e este, que já sabia pelo bacharel o estado em que seu amo se achava, topando a ama e a sobrinha chorosas, começou igualmente a soluçar e a derramar lágrimas.