Dom Quixote de La Mancha – Livro Primeiro - Cap. 34: CAPÍTULO XXXIII - Onde se conta a novela do curioso impertinente. Pág. 359 / 590
porque, vendo Camila que eu a solicito, há-de, de si para consigo, entender que alguma leviandade descobri eu nela, que me afoitou a apresentar-lhe os meus ruins desejos; e, tendo-se ela por desonrada, e pertencendo-te ela a ti, contigo fica também a sua desonra. Daqui nasce o que tão geralmente se costuma, isto é, que ao marido da mulher adúltera, posto que ele não sabia que ela o é, nem para tal haja dado ocasião, nem estivesse em seu poder impedir a sua desgraça, contudo o tratam com título ignominioso; e os que sabem ter a mulher caído já o ficam olhando de certa maneira, com os olhos de desprezo, em vez de compaixão, apesar de verem que chegou àquela desventura, não por culpa sua, mas só por gosto da sua depravada companheira. Quero agora dizer-te em que se funda a justa razão de ser desonrado o marido da mulher pecadora, ainda que ele não saiba que ela o é, nem de tal tenha culpa, nem haja sido participante, nem dado ocasião para ela o ser; e não te importunes de me ouvir, que tudo é para teu proveito. Quando Deus criou o nosso primeiro pai no paraíso terreal, diz a divina Escritura que infundiu um sono em Adão, e que, estando este a dormir, lhe tirou uma costela do lado esquerdo, de que formou a nossa mãe Eva; e, assim que Adão acordou e a viu, disse: “Esta é a carne da minha carne; e o osso dos meus ossos”; e Deus disse: “Por esta deixará o homem pai e mãe, e serão dois numa só carne”; e então foi instituído o divino sacramento do matrimônio, com laços tais, que só a morte os pode desatar; e tamanha força e virtude tem este milagroso sacramento, que faz de duas pessoas diferentes uma mesma carne; e ainda faz mais nos bons casados, que, ainda que têm duas almas, não têm mais de uma só vontade. Daqui vem que, sendo