Dom Quixote de La Mancha – Livro Segundo - Cap. 34: CAPÍTULO XXXIV - Que dá conta da notícia que se teve de como se havia de desencantar a incomparável Dulcineia del Toboso, que é uma das aventuras mais famosas deste livro. Pág. 280 / 593
Apeou-se a duquesa e, com um agudo venábulo nas mãos, pôs-se no sítio por onde sabia que costumavam romper alguns javalis; apearam-se também o duque e D. Quixote e colocaram-se ao lado dela; Sancho deixou-se ficar atrás de todos, sem se apear do ruço, que não ousava desamparar, para que não tivesse algum desmando, e, apenas tinham posto o pé no chão, e formado alas com muitos criados, viram que vinha para eles, acossado pelos cães e seguido pelos caçadores, um desmedido javali, rangendo dentes e colmilhos, e deitando espuma pela boca; e, apenas o viu, embraçando o escudo, e levando a mão à espada, adiantou-se D. Quixote a recebê-lo; o mesmo fez o duque com o seu venábulo, mas a todos se adiantaria a duquesa, se seu marido lho não impedisse. Só o nosso Sancho é que, apenas viu o valente animal, desamparou o ruço e largou a correr o mais que pôde e, procurando subir a um alto carvalho, não o conseguiu; antes, quando chegou ao meio, agarrado a um ramo, tentando trepar ao cimo da árvore, tão desgraçado foi, que se partiu o ramo e Sancho caiu; mas antes de desabar no chão, ficou pendurado de um esgalho: e, vendo-se assim, sentindo que se lhe rasgava o saio verde, e parecendo-lhe que, se a fera se chegasse para ali, o poderia apanhar, começou a dar tamanhos gritos e a pedir socorro com voz tão aflita, que todos que o ouviam e não o viam supunham que estava nos dentes de algum bicho. Finalmente, o cerdoso javali ficou atravessado pelos ferros de muitos venábulos, e D. Quixote, voltando a cabeça, aos gritos de Sancho, deu com ele pendurado do carvalho, de cabeça para baixo, e ao pé o ruço, que o não desamparou na sua calamidade; e diz Cid Hamete, que poucas vezes se viu Sancho Pança sem se ver o ruço, nem o ruço sem se ver Sancho Pança, tal era a leal amizade que havia entre ambos.