Chegou-se D. Quixote e despendurou Sancho, o qual, vendo-se livre e no chão, olhou para o seu esfarrapado saio e sentiu grande pesar, porque imaginara que aquele fato seria para ele um morgado. Nisto, atravessaram o poderoso javali em cima de uma azêmola, e, cobrindo-o com ramos de rosmaninho e murta, levaram-no, como em sinal de vitoriosos despojos, para umas grandes tendas de campanha, que estavam armadas no meio do bosque, onde encontraram as mesas em ordem, e o jantar servido com tanta suntuosidade e grandeza, que bem mostrava a magnificência de quem o dava.
Sancho, mostrando à duquesa os rasgões do seu roto saio, disse:
— Se esta caça fosse às lebres ou aos pássaros, estaria livre o meu saio de se ver neste extremo; não sei que gosto pode haver em esperar um animal que, se nos deita um colmilho, nos pode tirar a vida: lembro-me de ter ouvido cantar um romance antigo, que diz:
Que te comam feros ursos, como ao célebre Favila.
— Esse foi um rei godo — disse D. Quixote — que, indo à caça da montaria, foi comido por um urso.
— É o que eu digo — respondeu Sancho; — não me parece bem que os príncipes e os reis se metam em semelhantes perigos, por um prazer que, afinal de contas, o não é, porque consiste em matar um animal que nenhum delito cometeu.
— Pois muito vos enganais, Sancho — respondeu o duque — o exercício da caça do monte é mais conveniente e necessário para reis e príncipes, do que nenhum outro. A caça é uma imagem da guerra: tem estratagemas, astúcias, insídias, para se vencer a são e salvo o inimigo. Padecem-se nela grandíssimos frios e intoleráveis calores, menoscaba-se o ócio e o sono, corroboram-se as forças, tornam-se ágeis os membros de quem a usa, e enfim é um exercício que se pode fazer