Se não, digam-me: quantas histórias não há cheias destas maravilhas? Vivesse hoje, em má hora para mim, que não quero dizer para outro, o famoso D. Belianis, ou algum dos da inumerável linhagem de Amadis de Gaula que se o turco se medisse com algum deles, à fé que lhe não arrendava o ganho, nem por um maravedi; mas Deus olhará pelo seu povo, e algum suscitará que, se não for tão bravo como os antigos paladinos, pelo menos lhes não será inferior no ânimo; e Deus me entende, e mais não digo.
— Ai! — acudiu a sobrinha — me matem, se meu tio não quer voltar a ser cavaleiro andante!
E D. Quixote respondeu:
— Cavaleiro andante hei-de morrer e suba ou desça o turco quando quiser e quanto puder, que outra vez digo que Deus me entende.
E nisto acudiu o barbeiro:
— Peço a Vossas Mercês que me deem licença para narrar um breve caso que se passou em Sevilha, e que, por vir aqui de molde, sinto vontade de contar.
Deu D. Quixote a licença, e o cura e os outros prestaram atenção, e mestre Nicolau começou desta maneira:
— Na casa dos doidos de Sevilha, estava um homem a quem os seus parentes tinham metido ali, por falta de juízo: era formado em cânones por Ossuna; mas, ainda que o fosse por Salamanca, segundo a opinião de muitos, não deixaria de ser louco. Este tal doutor, ao cabo de alguns anos de recolhimento, começou a imaginar que estava são, e em seu perfeito juízo, e, com esta imaginação, escreveu ao arcebispo, suplicando-lhe muito encarecidamente e com mui concertadas razões que o mandasse tirar daquela miséria em que vivia, pois pela misericórdia de Deus já recobrara o juízo perdido; mas que os seus parentes, para lhe desfrutarem a fazenda, o tinham ali, e contra toda a razão queriam que ele fosse doido até à morte.