A Cidade e as Serras - Cap. 5: CAPÍTULO V Pág. 67 / 238

.. E como ao mirar o palacete, debruçada, ela roçara a mata fulva do pêlo crespo pela minha barba - berrei desesperadamente ao cocheiro que galopasse para a Rua do Helder, nº 16, quarto andar, porta à esquerda!

Amei aquela criatura. Amei aquela criatura com Amor, com todos os Amores que estão no Amor, o Amor Divino, o Amor Humano, o Amor Bestial, como Santo Antonino amava a Virgem, como Romeu amava Julieta, como um bode ama uma cabra. Era estúpida, era triste. Eu deliciosamente apagava a minha alegria na cinza da sua tristeza; e com inefável gosto afundava a minha razão na densidade da sua estupidez. Durante sete furiosas semanas perdi a consciência da minha personalidade de Zé Fernandes - Fernandes de Noronha e Sande, de Guiães! Ora se me afigurava ser um pedaço de cera que se derretia, com horrenda delícia, num forno rubro e rugidor; ora me parecia ser uma faminta fogueira onde flamejava, estalava e se consumia um molho de galhos secos. Desses dias de sublime sordidez só conservo a impressão de uma alcova forrada de cretones sujos, de uma bata de lã cor de lilás com sotaches negros, de vagas garrafas de cerveja no mármore de um lavatório, e de um corpo tisnado que rangia e tinha cabelos no peito. E também me resta a sensação de incessantemente e com arrobado deleite me despojar, arremessar para um regaço, que se cavava entre um ventre sumido e uns joelhos agudos, o meu relógio, os meus berloques, os meus anéis, os meus botões de punho de safira, e as cento e noventa e sete libras em ouro que eu trouxera de Guiães numa cinta de camurça. Do sólido, decoroso, bem fornecido Zé Fernandes, só restava uma carcaça errando através de um sonho, com as gâmbias moles e a baba a escorrer.

Depois, uma tarde, trepando com a costumada gula a escada da Rua do Helder, encontrei a porta fechada - e arrancado da umbreira aquele cartão de Madame Colombe que eu lia sempre tão devotamente e que era a sua tabuleta.





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