– Interrompa quanto quiser, que eu cá estou. O rei da Lusitânia Górgoris teve uma filha que se apaixonou por um homem de baixa extracção. O que denunciou estes amores foi, diz Bernardo de Brito, em uma palavra de cunho português de lei, foi a “emprenhidão”.
– Credo! Que palavra! – exclamou com engulho D. Maria Tibúrcia.
– Não parece palavra de pessoa eclesiástica! – Notou a outra senhora não menos escandalizada.
O mano Teotónio, como tinha piscado o olho direito ao cónego, ria-se; e o cónego, com a maior gravidade, disse:
– Minhas senhoras, os antigos faziam as coisas e diziam-nas; hoje em dia a civilidade não permite dizê-las. Ande lá com a filha de Górgoris, senhor desembargador.
– Deu ela à luz um menino, que o avô deitou às feras; e, como as feras o não comessem, atirou-o ao Tejo. Foi o menino encontrado no sítio que hoje chamam Santarém; e, como quer que uma corça lhe desse o primeiro leite, chamou-se o menino Ábidis, e daí veio chamar-se ao lugar Esca Abis (manjar de Ábidis), e, corrupto, Scalabis, etc.
– Tudo isso me parecem vocábulos corruptos e interpretações corruptíssimas – objectou o cónego Botelho – e, ainda que as entendesse, fábulas de Brito não me engodam. Esse frade, se não inventou o mel como Górgoris, inventou Laimundus, e Mestre Menegaldo e Pedro Aládio, que existiram tanto neste mundo como o tal Ábidis.
Enfim, senhor doutor Teotónio de Valadares, permita-me que eu repugne a que a enjeitada tenha um sobrenome procurado na fábula.