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Capítulo 1: O homem da multidão

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Havia muitos indivíduos de aspecto janota, que facilmente compreendi pertencerem à raça dos carteiristas elegantes, que infestam todas as grandes cidades. Observei com grande curiosidade esta espécie de gente e pareceu-me difícil conceber como podiam alguma vez ser tomados por cavalheiros pelos cavalheiros propriamente ditos. O aspecto volumoso das suas cinturas, aliado a um ar de excessiva franqueza, devia traí-los de imediato.

Os jogadores, dos quais distingui um bom número, eram ainda mais facilmente reconhecíveis. Usavam toda a gama de trajes, desde o do escroque rufião, de colete de veludo, lenço de pescoço de fantasia e botões de punho de filigrana, até ao do clérigo escrupulosamente modesto, menos susceptível do que ninguém de despertar qualquer suspeita. No entanto, todos eles podiam distinguir-se por um certo tom trigueiro da pele flácida, uma leve opacidade do olhar e lábios pálidos e comprimidos. Havia, além destas, duas outras características através das quais me era sempre possível detectá-los: um comedido tom abafado ao falarem e uma extensão maior do que o comum do polegar numa direcção perpendicular aos outros dedos. Frequentemente, em companhia destes vigaristas, observava um tipo de homens de hábitos um tanto diferentes, conquanto se tratasse ainda de aves da mesma pena. Podem definir-se como cavalheiros que vivem do seu expediente. Parecem atacar o público em dois batalhões distintos - o dos janotas e o dos militares. São características principais do primeiro os cabelos e sorrisos longos; do segundo, os sobretudos com alamares e cenhos franzidos.

Descendo na escala daquilo a que costuma chamar-se a classe elevada, ofereceram-se-me temas de especulação mais obscuros e profundos. Vi vendedores ambulantes judeus, cujos olhos de falcão cintilavam em fisionomias onde os traços restantes revelavam tão-só uma expressão de abjecta humildade; mendigos profissionais lançando olhares carregados a pedintes de melhor condição, que só o desespero lançara nas trevas da noite em busca da caridade; débeis e espectrais inválidos, sobre os quais a morte tinha já cravado firmemente as garras, caminhando vacilantes e de esguelha por entre a multidão e olhando toda a gente implorativamente no rosto, como procurando algum conforto de ocasião, alguma esperança perdida; jovens modestas que regressavam de um trabalho aturado e tardio para um triste lar, e que se encolhiam, mais lacrimosas do que indignadas, sob os olhares dos atrevidos cujo contacto directo nem sequer logravam evitar; mulheres de mau porte de todos os tipos e idades - a beleza indiscutível no apogeu da sua feminilidade, fazendo lembrar a estátua de Luciano, cuja superfície era de mármore pário mas tinha o interior recheado de lixo; a repugnante leprosa, irreversivelmente perdida; a bruxa enrugada, coberta de jóias e de pintura, num último esforço para agarrar a juventude; a simples criança de formas ainda imaturas e contudo, por influência do longo convívio, afeita já aos terríveis coquetismos da profissão, ambicionando fanática e febrilmente por enfileirar em pé de igualdade com as suas companheiras de vício mais velhas; e bêbedos indescritíveis e em inumerável quantidade, uns esfarrapados e cobertos de remendos cambaleantes, desarticulados, de rosto pisado e olhos baços; outros completamente vestidos, embora sujos, com um andar afectado levemente vacilante, grossos lábios sensuais e rosto rubicundo e franco.

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O homem da multidão 1