- O meu lugar é onde há vítimas - disse o padre, com simplicidade.
Calaram-se as duas e ficaram a olhar para o seu hóspede com santa admiração.
- Irmã Marta - disse ele, dirigindo-se à religiosa que fora buscar a caixa das hóstias -, esse enviado deve responder Fiat voluntas à palavra Hosanna.
- Está gente na escada! - exclamou a outra religiosa, abrindo um escaninho praticado no tecto.
Desta vez foi fácil ouvir, no meio do mais profundo silêncio, os passos de um homem que fazia ressoar os degraus cobertos de calosidades provocadas pela lama endurecida. O padre ocultou-se, penosamente, numa espécie de anuário, e a religiosa atirou com uns trapos para cima dele.
- Pode fechar, irmã Agata - disse o padre, numa voz sufocada.
Mal ele se escondera, ressoavam três pancadas na porta, que fizeram estremecer as duas santas mulheres, que se entreolharam consultando-se mutuamente sem pronunciarem palavra. Aparentavam cada uma delas os seus sessenta anos. Isoladas do mundo havia quarenta, eram como plantas habituadas ao ar de uma estufa, que logo morrem se de lá as tiram. Acostumadas à vida c1austral, não podiam conceber outra. Quando, certa manhã, foram quebradas as grades que as encerravam, estremeceram ao sentir-se livres. É fácil de imaginar a espécie de imbecilidade factícia que os acontecimentos da Revolução haviam produzido nas suas almas inocentes. Incapaz de harmonizarem as suas ideias claustrais com as dificuldades da vida, e sem compreenderem, mesmo, a própria situação em que se viam, pareciam duas crianças de quem outros tinham cuidado até então e que, abandonadas pela sua providência maternal, oravam em vez de gritarem. Por isso, diante do perigo que naquele momento previam, permaneciam mudas e passivas, uma vez que não conheciam outra defesa que não fosse a resignação cristã.
