Amor de Perdição - Cap. 2: Capítulo 2 Pág. 4 / 145

O provinciano saiu das masmorras da Junqueira ilibado da infamante nódoa, e até benquisto do conde de Oeiras, porque tomara parte na prova que este fizera do primor de sua genealogia sobre a dos Pintos Coelhos do Bonjardim do Porto: pleito ridículo, mas estrondoso, movido pela recusa que o fidalgo portuense fizera de sua filha ao filho de Sebastião José de Carvalho.

As artes com que o bacharel flautista vingou insinuar-se na estima de D. Maria I e Pedro III não as sei eu. É tradição que o homem fazia rir a rainha com as suas facécias, e porventura com os trejeitos de que tirava o melhor do seu espírito. O certo é que Domingos Botelho frequentava o paço, e recebia do bolsinho da soberana uma farta pensão, com a qual o aspirante a juiz de fora se esqueceu de si, do futuro, e do ministro da justiça que, muito rogado, fiara das suas letras o encargo de juiz de fora de Cascais.

Já está dito que ele se atreveu aos amores do paço, não poetando como Luís de Camões ou Bernardim Ribeiro; mas namorando na sua prosa provinciana, e captando a benquerença da rainha para amolecer as durezas da dama. Devia de ser, afinal, feliz o «doutor bexiga» – que assim era na corte conhecido – para se não desconcertar a discórdia em que andam rixados o talento e a felicidade. Domingos Botelho casou com D. Rita Preciosa. Rita era uma formosura, que ainda aos cinquenta anos se podia prezar de o ser. E não tinha outro dote, se não é dote uma série de avoengos, uns bispos, outros generais, e entre estes o que morrera frigido em caldeirão de não sei que terra da mourisma; glória, na verdade, um pouco ardente; mas de tal monta que os descendentes do general frito se assinaram Caldeirões.

A dama do paço foi ditosa com o marido. Molestavam-na saudades da corte, das pompas das câmaras reais, e dos amores de sua feição e molde, que imolou ao capricho da rainha. Este desgostoso viver, porém, não empeceu que se reproduzissem em dois filhos e três meninas. O mais velho era Manuel, o segundo Simão; das meninas uma era Maria, a segunda Ana, e a última tinha o nome de sua mãe, e alguns traços da beleza dela.





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