O Cortiço - Cap. 21: Capítulo 21 Pág. 218 / 239

o lagar à pálida mocinha de mãos delicadas e cabelos perfumados, que era o bem, porque era o que ria e alegrava, porque era a vida nova, o romance solfejado ao piano, as flores nas jarras, as sedas e as rendas, o chá servido em porcelanas caras; era enfim a doce existência dos ricos, dos felizes e dos fortes, dos que herdaram sem trabalho ou dos que, a puro esforço, conseguiram acumular dinheiro, rompendo e subindo por entre o rebanho dos escrupulosos ou dos fracos. E o vendeiro tinha defronte dos olhos o namorado sorriso da filha do Miranda, sentia ainda a leve pressão do braço melindroso que se apoiara ao seu, algumas horas antes, em passeio pela praia de Botafogo; respirava ainda os perfumes da menina, suaves, escolhidos e penetrantes como palavras de amor; nos seus dedos grossos, curtos, ásperos e vermelhos, conservava a impressão da tépida carícia daquela mãozinha enluvada que, dentro em pouco, nos prazeres garantidos do matrimônio, afagar-lhe-ia as carnes e os cabelos.

Mas, e a Bertoleza?...

Sim! era preciso acabar com ela! despachá-la! sumi-la por uma vez!

Deu meia-noite no relógio do armazém. João Romão tomou uma vela e desceu aos fundos da casa, onde Bertoleza dormia. Aproximou-se dela, pé ante pé, como um criminoso que leva uma ideia homicida.

A crioula estava imóvel sobre o enxergão, deitada de lado, com a cara escondida no braço direito, que ela dobrara por debaixo da cabeça. Aparecia-lhe uma parte do corpo, nua.

João Romão contemplou-a por algum tempo, com asco.

E era aquilo, aquela miserável preta que ali dormia indiferentemente, o grande estorvo da sua ventura!... Parecia impossível!

— E se ela morresse?...

Esta frase, que ele tivera, quando pensou pela primeira vez naquele obstáculo à sua felicidade, tornava-lhe agora ao espírito, porém já amadurecida e transformada nesta outra:

— E se eu a matasse?

Mas logo um calafrio de pavor correu-lhe por todos os nervos.

Além disso, como?... Sim, como poderia despachá-la, sem deixar sinais comprometedores do crime?...





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