A Linha de Sombra - Cap. 4: II Pág. 63 / 155

Toda uma espécie de pormenores, que um marinheiro é capaz de observar logo que chega, me feriram, acto contínuo, a retina, vivamente. De resto, era como se ele se tivesse libertado de todas as contingências materiais da existência. A terra, a que as amarras o prendiam, era como se nem sequer existisse. Para mim, que eram, afinal, todos os países do globo? Em todos os cantos do mundo, banhasse-os assim uma água navegável, as relações entre nós seriam as mesmas... mais intimas, na sua qualidade, do que é capaz de expressar a linguagem de todos os dias. Depois, tudo o mais, todas as cenas e peripécias, não seriam mais que um espectáculo efémero. Até a massa de coolies amarelos, tão activos à volta da escotilha grande, era menos real do que a matéria de que são feitos os sonhos. Como e porque diabo havia eu de sonhar com chineses?

Encaminhei-me para a ré, subi ao tombadilho, onde, sob o toldo, refulgia o cobre dos objectos acessórios, no estilo dos iates de recreio, brilhavam as superfícies polidas dos balaústres, o vidro das clarabóias. Ao fim da ré no tombadilho, lá estavam dois marinheiros entretidos a limpar o leme, com ondas de reflexos luminosos percorrendo-lhes voluvelmente as costas dobradas, e continuavam a sua tarefa, sem darem por mim, nem no olhar quase afectuoso que lhes enderecei ao passar, direito à escada que conduzia à câmara.

A porta estava aberta de par em par e a tampa de correr da gaiuta puxada para trás, por completo. A meia-volta das escadas cortava a vista da antecâmara. Subia de lá de baixo um trautear, que se interrompeu, todavia, de repente, ao som dos meus passos a descerem.





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