Dom Quixote de La Mancha – Livro Primeiro - Cap. 25: CAPÍTULO XXIII - Do que ao famoso D. Quixote sucedeu em Serra Morena, que foi uma das mais raras aventuras coutadas nesta verdadeira história. Pág. 221 / 590

e assim o melhor será desistirmos dessa inútil diligência, e ficá-lo eu possuindo de boa fé, até que por alguma outra via menos curiosa, e sem essas diligências, se nos depare o verdadeiro senhor; e poderá ser isso quando o eu já tiver gasto; e então onde o não há, El-Rei o perde.

— Enganas-te, Sancho — respondeu D. Quixote; — já que entramos em suspeita, e quase certeza, de quem é o dono, estamos obrigados a procurá-lo e a restituir; e, ainda que o não buscássemos, a veemente suspeita que temos de que ele o seja já nos põe em tamanha culpa, como se realmente o fosse. Portanto, Sancho amigo, não te pese o rastrearmo-lo; maior pena do que essa tua fora a minha, se o não acháramos.

E assim picou o Rocinante, seguindo-o Sancho a pé, e carregado, graças ao Ginezinho de Passamonte.

Havendo rodeado parte da montanha, acharam num regato, caída, morta e meio comida dos cães e picada dos corvos, uma mula ensilhada e enfreada, o que tudo os confirmou ainda mais nas suspeitas de que o fugitivo era o dono da mula e do coxim. Estando a olhar para ela, ouviram uns assobios, como de pastor de gado, e inesperadamente avistaram à esquerda uma boa quantidade de cabras, e atrás delas, pelo alto do monte, o cabreiro que as guardava, que era um homem ancião.

Bradou-lhe D. Quixote, rogando-lhe que descesse donde estava. Respondeu ele a gritos, perguntando quem os havia trazido àquele lugar, poucas vezes pisado, ou nunca senão de pés de cabras, ou de lobos, ou outras feras, que por ali não faltavam. Respondeu-lhe Sancho que descesse, que de tudo se lhe daria conta.

Desceu o cabreiro; e, chegando onde D. Quixote estava, disse:

— Aposto que está reparando na mula de aluguer morta ali naquele barranco; seis meses há que ela para ali jaz.





Os capítulos deste livro

PRÓLOGO 1 AO LIVRO DE D. QUIXOTE DE LA MANCHA 10 PRIMEIRA PARTE / LIVRO PRIMEIRO / CAPÍTULO I - Que trata da condição e exercício do famoso fidalgo D. Quixote de La Mancha. 15 CAPÍTULO II - Que trata da primeira saída que de sua terra fez o engenhoso D. Quixote. 21 CAPÍTULO III - No qual se conta a graciosa maneira que teve D. Quixote em armar-se cavaleiro. 28 CAPÍTULO IV - Do que sucedeu ao nosso cavaleiro saindo da venda. 36 CAPÍTULO V - Em que se prossegue a narrativa da desgraça do nosso cavaleiro. 44 CAPÍTULO VI - Da curiosa e grande escolha que o padre cura e o barbeiro fizeram na livraria do nosso engenhoso fidalgo. 49 CAPÍTULO VII - Da segunda saída do nosso bom cavaleiro D. Quixote de la Mancha. 57 CAPÍTULO VIII - Do bom sucesso que teve o valoroso D. Quixote na espantosa e jamais imaginada aventura dos moinhos de vento, com outros sucessos dignos de feliz recordação. 63 LIVRO SEGUNDO / CAPÍTULO IX - Em que se conclui a estupenda batalha que o galhardo biscaínho e o valente manchego tiveram. 73 CAPÍTULO X - Graciosas práticas entre D. Quixote e seu escudeiro Sancho Pança. 79 CAPÍTULO XI - Do que a D. Quixote sucedeu com uns cabreiros. 85 CAPÍTULO XII - Do que referiu um cabreiro aos que estavam com D. Quixote. 92 CAPÍTULO XIII - Em que se dá fim ao caso da pastora Marcela, com outros sucessos. 100 CAPÍTULO XIV - Onde se põem os versos desesperados do pastor defunto, com outros imprevistos sucessos. 111 LIVRO TERCEIRO / CAPÍTULO XV - Em que se conta a desgraçada aventura, que a D. Quixote ocorreu com uns desalmados iangueses. 121 CAPÍTULO XVI - Do que sucedeu ao engenhoso fidalgo na venda que ele imaginava ser castelo. 130 CAPÍTULO XVII - Em que se prosseguem os inumeráveis trabalhos, que o bravo D. Quixote e seu escudeiro Sancho Pança passaram na venda, que o fidalgo por seu mal cuidara ser castelo. 139 CAPÍTULO XVIII - Onde se contam as razões que passou Sancho Pança com seu senhor D. Quixote com outras aventuras dignas de ser contadas. 149 CAPÍTULO XIX - Das discretas razões que Sancho passava com o amo e da aventura que lhes sucedeu com um defunto, e outros acontecimentos famosos. 161 CAPÍTULO XX - Da nunca vista nem ouvida aventura que jamais cavaleiro algum famoso no mundo acabou, e a concluiu, quase sem perigo, D. Quixote de la Mancha. 170 CAPÍTULO XXI - Que trata da alta aventura e preciosa ganância do elmo de Mambrino, com outras coisas sucedidas ao nosso invencível cavaleiro. 186 CAPÍTULO XXII - Da liberdade que D. Quixote deu a muitos desafortunados, que iam levados contra sua vontade onde eles por si não quereriam ir. 200 CAPÍTULO XXIII - Do que ao famoso D. Quixote sucedeu em Serra Morena, que foi uma das mais raras aventuras coutadas nesta verdadeira história. 213 CAPÍTULO XXIV - Em que se prossegue a aventura da Serra Morena. 227 CAPÍTULO XXV - Que trata das estranhas coisas que em Serra Morena sucederam ao valente cavaleiro da Mancha, e da imitação que fez da penitência de Beltenebrós. 238 CAPÍTULO XXVII - De como se houveram o cura e o barbeiro, com outras coisas dignas de ser contadas nesta grande história. 266 LIVRO QUARTO / CAPÍTULO XXVIII - Que trata da nova e agradável aventura sucedida na mesma serra ao cura e ao barbeiro. 285 CAPÍTULO XXIX - Que trata do gracioso artifício e ordem que se teve em tirar o nosso amorado cavaleiro da muito áspera penitência em que se havia posto. 302 CAPÍTULO XXX - Que trata da discrição da formosa Dorotéia, com outras coisas de muito sabor e passatempo. 316 CAPÍTULO XXXI - Das saborosas conversações que houve entre D. Quixote e o seu escudeiro com outros sucessos. 328 CAPÍTULO XXXII - Que trata do que na venda sucedeu a todo o rancho de D. Quixote. 339 CAPÍTULO XXXIII - Onde se conta a novela do curioso impertinente. 347 CAPÍTULO XXXIV - Em que se prossegue a novela do curioso impertinente. 369 CAPÍTULO XXXV - Em que se trata da grande e descomunal batalha que teve D. Quixote com uns odres de vinho tinto, e se dá fim à novela do curioso impertinente. 390 CAPÍTULO XXXVI - Que trata de outros sucessos raros que na taverna sucederam. 401 CAPÍTULO XXXVII - No qual se prossegue com a história da famosa infanta de Micomicão, e de outras graciosas aventuras. 415 CAPÍTULO XXXVIII - Em que se continua o discurso que fez D. Quixote sobre as armas e as letras. 429 CAPÍTULO XXXIX - Onde o cativo conta a sua vida e sucessos dela. 435 CAPÍTULO XL - No qual se conta a história do cativo. 446 CAPÍTULO XLI - No qual o cativo continua a sua história. 461 CAPÍTULO XLII - Em que se trata do mais que sucedeu na estalagem, e de outras coisas dignas de serem conhecidas. 485 CAPÍTULO XLIII - Onde se conta a agradável história do moço das mulas com outros estranhos sucessos acontecidos na venda. 494 CAPÍTULO XLIV - Onde se prosseguem os inauditos sucessos da venda. 505 CAPÍTULO XLV - Onde se acaba de averiguar a dúvida do elmo de Mambrino e da albarba, e de outras aventuras sucedidas com toda a verdade. 515 CAPÍTULO XLVI - Da notável aventura dos quadrilheiros, e da grande ferocidade do nosso bom cavaleiro D. Quixote. 524 CAPÍTULO XLVII - Do modo estranho como foi encantado D. Quixote de la Mancha, com outros sucessos. 534 CAPÍTULO XLVIII -Onde prossegue o cônego no assunto dos livros de cavalaria, com outras coisas dignas do seu engenho. 545 CAPÍTULO XLIX - Onde se trata do discreto colóquio que Sancho Pança teve com seu amo D. Quixote. 554 CAPÍTULO L - Das discretas altercações que D. Quixote e o cônego tiveram, com outros sucessos. 563 CAPÍTULO LI - Que trata do que contou o cabreiro a todos os que levavam D. Quixote. 571 CAPÍTULO LII - Da pendência que teve D. Quixote com o cabreiro, com a rara aventura dos penitentes, a que felizmente deu fim à custa do seu suor. 578