— Para isso — tornou o do Bosque — darei ainda remédio suficiente, e vem a ser que, antes de começarmos a peleja, chegarei ao pé de Vossa Mercê, e lhe arrumarei três ou quatro bofetadas que o virem, e com isso lhe despertarei a cólera, ainda que esteja com mais sono que uma toupeira.
— Contra esse golpe sei outro, que lhe não fica a dever nada — respondeu Sancho; — agarrarei num pau, e, antes que Vossa Mercê se chegue para me despertar a cólera, eu adormecerei a sua à bordoada, e de tal forma, que só despertará no outro mundo, onde se sabe que não sou homem que se deixe esbofetear por ninguém; e cada qual veja como despede o virote, e o mais acertado é deixar dormir a cólera dos outros, que a gente não sabe com quem se mete, e pode-se ir buscar lã e voltarse tosquiado, e Deus abençoou a paz e amaldiçoou as rixas, porque se um gato, acossado, fechado e apertado, se muda em leão, eu, que sou homem, Deus sabe em que poderei mudar-me; e assim, desde já intimo a Vossa Mercê, senhor escudeiro, que fica responsável por todo o mal e dano que da nossa pendência resultar.
— Está bom — redarguiu o da Selva — em amanhecendo falaremos.
Já principiavam a gorjear nas árvores mil pintalgados passarinhos, e com seus variados e alegres cantos parecia que saudavam a fresca aurora, que já pelas portas e balcões do oriente ia descobrindo a formosura do seu rosto, sacudindo dos seus cabelos um número infinito de líquidas pérolas, cuja suave umidade, banhando as ervas, fazia parecer que eram elas que se desentranhavam em branco e miúdo aljôfar; os salgueiros destilavam saboroso maná, riam-se as fontes, murmuravam os arroios, alegravam-se as relvas e enriqueciam-se os prados com a vinda da madrugada.