Dom Quixote de La Mancha – Livro Segundo - Cap. 27: CAPÍTULO XXVII - Onde se dá conta de quem eram mestre Pedro e o seu macaco, e também do mau resultado que tirou D. Quixote da aventura do zurro, a que não pôs o termo que desejava e pensava. Pág. 223 / 593
entendo, segundo as leis do duelo, que andais erradamente, supondo-vos afrontados, porque nenhum particular pode afrontar um povo inteiro, senão arrojando a todos juntos o epíteto de traidores, por não saber qual deles foi que cometeu a traição. Temos exemplo disto em D. Diogo Ordoñez de Lara, que desafiou todo o povo de Samora, porque ignorava que só Velido Dolfos fora o traidor que matara o seu rei, e por isso a todos reptou e a todos tocava a vingança e a resposta; e, ainda assim, não pode deixar de se dizer que o senhor D. Diogo andou com certa precipitação, e passou muito adiante dos limites do repto, porque não tinha motivo para reptar os mortos, as águas e os pães e os que ainda não tinham nascido, nem as outras minudências que no desafio se declaram; mas, enfim, passe! porque, quando a cólera se apodera impetuosamente de um homem, não há quem lhe segure a língua, nem há freio que a corrija. Sendo, pois, isto assim, que um homem só não pode afrontar nem reino, nem província, nem cidade, nem república, nem povo algum inteiro, é claro que não há motivo para sairdes a vingar-vos de semelhante afronta, que o não é, porque seria curioso que a cada passo se matassem os habitantes de diferentes povoações, que têm diversas alcunhas, e os que lhas puseram ou que por elas os chamem; seria estranho, decerto, que todos os povos insignes, que têm alcunhas, se chacoteassem e se vingassem e andassem continuamente de espada desembainhada em qualquer pendência, por pequena que fosse. Não, não, nem Deus tal permita, nem queira; os varões prudentes, as repúblicas bem concertadas, por quatro coisas hão-de pegar em armas e arriscar as suas pessoas, vidas e fazendas. Primeira, para defender a fé católica; segunda, para defender a vida,